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As aulas da noite

Maria João Falcão
 

Ia voltar ao mesmo liceu onde ensinara, quinze anos depois...

Que expectativas? Que ilusões? O medo não conseguir?

Até que ponto me prejudicara o afastamento?

Viver fora tantos anos!

Experiência, simultaneamente, dura e aliciante, a escolha do Ensino Recorrente fez-me sentir, de início, insegura, cheia de dúvidas angustiantes, revelou-se, afinal,  um “mergulho” necessário no país real.

Na multiplicidade de casos, na variedade de tipos de alunos, na instabilidade que eu própria experimentava, ia de encontro a essa realidade para mim “nova”.

Outra vez recomeçar...

Hoje, vistas as coisas, o regresso foi de uma profundidade muito intensa.

O primeiro contacto com o aluno estudante-trabalhador, com as dificuldades que revelavam a todos os níveis, não foi simples.

Era inevitável a falta de atenção resultante do cansaço. Muitos vinham directamente do trabalho, sem comer; outros iam voltar ao trabalho, depois das aulas porque iam iniciar turnos da noite. 

Juntava-se o desinteresse dos alunos vindos de cursos diurnos, desmotivados, pouco assíduos.

Uma amálgama em que predominavam as dificuldades na expressão em Português, oral e escrita, a falta de vocabulário, a incompreensão dos enunciados escritos, os erros de ortografia.

A insegurança, a desconfiança em relação ao professor, o facto de também eu me não sentir à vontade, faziam-nos sentir a todos inquietos.

 

Como explicar melhor?

Senti-me, às vezes, a realizar  uma “acção social” mais do que a ensinar.

A rejeição inicial, o recuo deles e o meu meu, transformou-se numa “descoberta” constante, numa “aventura” com pequenas conquistas, retrocessos enormes, desânimos.

De parte a parte? Ou só meus?, pensava.

Por vezes breves conquistas...

Ver alegria num rosto ao perceber que, finalmente, avançam no conhecimento era estimulante para mim. Mesmo que, no momento seguinte, voltasse o desânimo e a desmotivação, numa “luta” nem sempre gloriosa.

Muitas dificuldades iniciais, uma das quais foi “alinhar” os diversos níveis dentro das turmas.

Pareciam-me desconexas, heterodoxas, por razões de nível etário, como também cultural.

Sentia-me perdida.

“Estiveste parada no tempo”, disse-me uma vez uma colega, e eu sentia-me uma “extra-terrestre”, que tinha evolvido noutras realidades...

Lembrava palavras ditas numa “reunião de grupo”: “As instruções não vêm tão claras como deveriam vir. É preciso da nossa parte muita improvisação e muita paciência... e um esforço de grande criatividade.”

Ainda hoje acho graça a esta frase. Coitados dos professores!

“Não sou só eu”, pensava um pouco mais animada. Éramos todos...

Não sentia criatividade nas minhas aulas, nem sempre era fácil a tal “improvisação”. Restava-me a paciência...

De repente, pareciam abrir-se “clareiras”.

Eram só pequenas vitórias. Um olhar mais vivo, mais interessado?

A aluna que dissera, antes, não fazer tenção de aprender gramática e reconhecia, agora, que, afinal, um bocadinho conseguira aprender, que as orações se podiam entender, que o verbo era o verbo?...

Comecei a notar em mim um enriquecimento progressivo através dessa comunicação irregular e emotiva.

Também contribuísse com uma certa forma de voluntarismo: mostrar o meu entusiasmo (existisse ele ou não).

Falar, rir, para esquecer o sombrio da noite, as luzes de néon do tecto, o frio das salas, as expressões fechadas dos primeiros dias?

A troca nos dois sentidos, o dar e o receber; o não receber e ficarmos surpreendidos, revelava um relacionamento difícil, mas normal.

As sensibilidades que eu ofendia sem querer, e uma agressividade latente de parte a parte.

Magoava-me a frieza com que me davam a entender: “tu tens de me dar isto!”. E o subentendido: “não me atrases a vida! Olha, que eu preciso “disto” para viver!”

Ou seria a minha imaginação a trabalhar?

No entanto, percebia que criar uma “rede” de afectividades, de confiança, era a única forma de “comunicação”: a única maneira!

  

Ao mais pequeno sorriso de distensão, pensava: “quebrei já as barreiras?”

Era tudo tão transitório. Tinha que recomeçar todos os dias...

“Nada de utopias nem optimismos excessivos”, dizia para mim, a toda a hora.

A dificuldade permanecia, para eles e para mim.

O que aprendi nesses tempos duros foi, sobretudo, que só a minha abertura ao “diferente”, ao “outro”, é que poderia “abrir” uma pessoa e passar-lhe os conhecimentos, de uma forma “viva”, se eu própria me abrisse.

Pensava isso em momentos de desconforto, de mágoa, de angústia, em que a noite me fazia ver tudo “escuro” e triste, talvez pela luz fria a cair-nos do alto do tecto.

Mais tarde percebi que me ajudou a minha experiência de vida, vivida como estrangeira, em tantos países diferentes, em perpétua mudança, noutros mundos, a dizer “olá” e logo “adeus” e a adaptar-me aos muitos outros que fui encontrando.

“Estrangeirada”, agora, também, na minha terra.

Sentia alívio ao deixá-los, no fim de semana. Pesavam-me.

Porém, nas férias, sentia que me “faltavam” os meus “sombrios”, os meus “queixosos” da noite!

As suas angústias, as fragilidades, as histórias trágicas do quotidiano, dos filhos, das creches dos filhos, das aulas dos filhos, do pouco tempo que têm para a família começavam a fazer parte da minha vida.

E logo pensava uma coisa que me ajudava: eles precisavam de mim...