|
|
MENU |
A história do meu aluno Albino
Maria João Falcão O Albino!
Há muitos anos tive um aluno que nunca esqueci. De todos eles, recordo sempre um gesto, um sorriso, uma travessura, um olhar e essas imagens chegam envoltas numa espécie de névoa, onde aparece uma sala cheia de carteiras, de cadernos e livros, um quadro e um apagador, o cheiro a pó e a suor. Chamava-se Albino e dele lembro tudo: o rosto, a maneira de falar, o riso -talvez por nada ter que prendesse a atenção, o que pode parecer um paradoxo. Não era o aluno brilhante, ou o aluno divertido, ou o aluno tranquilo que não dá problemas. Era uma figura sem graça, com uma pele sebácea e escura, o cabelo rapado, os dentes irregulares e estragados e um dos da frente partido, a espreitar assim que abria a boca. Mas os olhos vivos, a brilhar, eram inteligentes, e tornavam-no num miúdo diferente dos outros. Irreverente, brincalhão, numa turma onde todos eram turbulentos, agitados, às vezes inconvenientes por falta de educação, a ironia da história era ser ele, muitas vezes, quem conseguia meter os outros na ordem. Para me ajudar. Recordo-os, ainda hoje com uma certa aflição, a entrarem na aula de roldão. Procuravam os lugares, agarravam-se aos tampos das carteiras, deixando um pé estendido para o próximo que passasse tropeçar e, antes que se sentassem e calassem todos, era uma luta entre mim e eles. Quando, finalmente, estavam sentados e eu pensava que podia começar a aula, logo um se levantava e se virava para o colega de trás, puxava-lhe o caderno, ou, sorrateiramente, deitava-lhe os lápis para o chão. Um sem número de tropelias iguais, repetidas que constituíam um divertimento e provocavam grandes gargalhadas a toda a turma. Como se, em cada aula, houvesse um desafio renovado: nenhum deveria parar a brincadeira antes dos outros: isso seria dar-se por vencido. Lembro frases que me fazem rir mas que, na altura, me enchiam os olhos de lágrimas, e me via aflita para esconder. Voava um papel, em bola, pelos ares e aterrava na cabeça de um qualquer. Logo :
Lá ao fundo, uma voz, excitada:
O Cristóvão era um dos mais terríveis, sempre cheio de ideias loucas a brotarem detrás dos caracóis e da cara suja. Virava-se, como se o impelisse uma mola:
E abanava a cabeça furiosamente. Era uma risada geral. Tudo lhes servia para brincar e fazer rir os outros. Os diálogos e os protestos cruzavam-se pelo ar e, com eles, as tais bolinhas de papel, aviões e pedaços de giz que, não sei como, lhes saíam dos bolsos sempre cheios. Eu olhava para eles, espantada, dolorida e com raiva. “Por que me deram estas turmas!?” Era o meu primeiro ano de ensino no Ciclo Preparatório, chegava jovem e sem experiência. E, de repente, via-me a ensinar Francês, do 2º ano, a oito turmas de rapazes, cada uma com trinta alunos. Os alunos estavam “arrumados” por idades, comportamento ou dificuldade, correspondendo a turma “A” aos mais miúdos, alunos de doze ou onze anos e a “H” aos maiores. A turma “H” era a mais difícil. Nesta, os alunos tinham em média dezasseis anos, e provinham de meios sociais difíceis, de bairros deteriorados, com problemas de vários tipos, situações que eu não estava preparada para enfrentar. A turma H era a pior e era a turma do Albino! Eles continuavam o barulho e eu fingia não ver nem ouvir, ia arrumando os papéis na secretária. “Se calhar, mais vale deixá-los expandirem-se um pouco...”, pensava. Sabia que, no fundo, o fazia por não saber como os parar. Depois, dava um grande suspiro e decidia começar de qualquer maneira. Batia na mesa, com força, mandava-os calar. Eles viravam-se, surpreendidos, quase ofendidos pela interrupção. E, nem sei bem como, conseguia começar a aula. Era uma turma com um rendimento fraco, mas o Albino era um bom aluno de francês. Gostava de responder primeiro do que os outros, queria ser ele a ler os textos e organizava a biblioteca da turma, tarefa que normalmente confiava aos alunos mais complicados e que eles desempenhavam bem. Às vezes, vinha falar comigo, no intervalo. Deixava os outros sair e ficava a arrumar os cadernos dentro da tampa das carteiras.
Havia uma expressão que ele usava a propósito de tudo:
Até quando acabava de limpar o quadro e estava a bater com o apagador fora da janela, fazendo desenhos com o giz, ia dizendo:
Muitas vezes, o Cristóvão “roubava-lhe” a expressão, a gozar com ele:
Na última hora de sexta-feira, era ainda mais difícil estabelecer a ordem e para mim era um pesadelo ver esse momento chegar. Eles desde manhã que já só pensavam no sábado! Cansados de uma semana inteira de aulas... e a aula de Francês era mesmo ao último tempo. À frente dois dias livres... Quando percebia a minha impaciência, nesses dias, o Albino olhava-me com um olhar cúmplice como a pedir licença e berrava:
A verdade é que lhe obedeciam e se calavam. Nesses fins de tarde, vinha despedir-se e desejar bom fim de semana. Eu arrumava os livros e a pilha de cadernos, para corrigir os trabalhos em casa. Falávamos pouco, ele procurava distrair-me porque me via triste. Ia contando coisas da vida dele, do que fazia para ajudar o pai, que tinha de ir buscar à taberna, e que este, sempre que o apanhava a jogar à bola, lhe batia.
Eu perguntava-lhe onde aprendera a falar francês.
Sorria, a mostrar os dentes grandes, e despedia-se.
O que eu gostaria de saber do Albino!
|