No mundo ocidental, a época natalícia, celebrando o
nascimento do menino Jesus, é um acontecimento
intemporal de grande pertinência religiosa, sendo também
alvo de diversas representações literárias, teatrais,
artísticas e até de interpretações filosóficas.
Nesta senda cultural, o museu parisiense
Jacquemart-André apresentará a obra de Fra Angélico até
meados de janeiro de 2014. Alguns quadros, direta ou
indiretamente, convidam-nos a enaltecer os valores
humanistas que envolvem este acontecimento.
Amor desinteressado e puro, segundo Tzevetan Todorov,
crítico literário e filosófico, está associado ao Natal.
Essa imagem de pureza relacional e espiritual é visível
no quadro de Baciccio, Saint Joseph et l’enfant
Christ.
José, esposo de Maria e pai adotante de Jesus, não tece
qualquer comentário que mereça a atenção dos santos
evangelistas para que apareça transcrito na Bíblia. Não
há uma palavra sua que seja reproduzida no livro
sagrado. Assim, ao cultivar um silêncio sublime e
desconcertante, os seus sentimentos pelo menino ganharam
mais profundidade e dando um especial sentido à sua ação
paternal, reforçando a sua santidade, a qual está
ancorada à missão que Deus lhe dera: em vez de repudiar
Maria, José deveria tomá-la por esposa e proteger o
menino que vai nascer.
Obedecendo aos desejos de Deus, José tornou-se um
referente e um modelo ético no âmbito da questão que é
transversal a todas as épocas e sociedades – adoção de
crianças. Esta atitude, nas sociedades atuais, implica
sempre uma reflexão e, subsequentemente, uma ação.
Ao contrário da maioria das representações que nos
apresentam São José numa pose demasiada séria e, por
vezes, até triste, Baciccio mostra-nos que ele, com a
paz na alma, é um homem doce e sorridente quando abraça
o seu filho adotivo, assumindo a paternalidade plena.
Nesta visão bacciciana, José viveu feliz, tendo em
consideração o evangelho: «felizes são os que ouvem a
palavra de Deus e a guardam» (Lucas 11, 28), isto é, a
praticam quotidianamente.
Felizmente, o cristianismo, apesar de muitas
adversidades e contradições praticadas por muitos dos
seus membros, não abandonou a difícil luta pela
dignidade humana e, nos dias de hoje, continua a
insistir na apologia do espírito natalício e nos valores
humanísticos – o elogio da família; a valorização da
maternidade e da paternidade no contexto da procriação e
na sua dimensão educativa; as relações de fraternidade;
a celebração da vida através do nascimento da criança
chamada Jesus; o milagre da encarnação, em que o Deus
menino assume a sua humanidade, ou seja, o infinito que
se torna finito; e, finalmente, a condenação da
violência política e social que, naquele tempo, envolveu
o nascimento da criança/menino que se tornou homem, isto
é, Cristo.
Em Portugal, a matriz cristã influenciou vários
escritores através dos tempos, valorizando a
criatividade estética. Neste caso, convém recordar o
Sermão do gloriosíssimo patriarca São José,1642, de
Padre António Vieira, ou um dos muitos textos poéticos
que Fernando Pessoa escreveu.
Então, eis a cândida beleza do MENINO, a qual, sendo
traduzível em sublime visão poética, nos oferece um
singular momento de feérica fruição.
“Num meio-dia de fim de Primavera,
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade
……
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até um trapo à roda da cintura,
……
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
……
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
……..
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
…….
A mim ensinou-me tudo.
…. “
Alberto Caeiro, Guardador de Rebanhos
Através das imagens que pretendem ser uma representação
da infância de Jesus, verificamos que elas são efeitos
de culturas/representações culturais, não atingindo
veracidades objetivas e concretas: a cor da pele ou dos
cabelos correspondem mais à dimensão física dos povos
nórdicos ou da região lombarda da Itália do que aos
povos semitas; a pose imperial do Menino Jesus de Praga
contradiz a ternura maternal da Virgem de Fuso ou a
pureza paternal de São José.
Nesta perspetiva, Baciccio impõe uma visão humanista da
divindade de Jesus – um Ser simpático, feliz e bastante
humano, ou seja, uma divindade que corresponde às
expectativas do homem moderno, tal como acontece com o
Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro.