PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

Formação Contínua de Professores: novos enquadramentos e contextualizações

José Verdasca
Coordenador Nacional da Unidade de Missão do PNPSE

1. A pergunta deixada por um diretor de agrupamento de escolas na revista do Expresso do passado dia 19 de março de 2016 era, ao mesmo tempo, inquietante e desafiante: “Gostava de saber se há alguém que prefira ser operado numa sala de cirurgia de há 40 anos ou numa atual, com equipamento moderno. Com o ensino é a mesma coisa.” (E: 49). Este é um dos enormes desafios da escola atual. Na verdade, são ainda por demais as semelhanças - nas configurações dos espaços e artefatos educativos, na gramática escolar, nos processos de ensino e aprendizagem -, do que as diferenças quando viajamos no tempo do presente para o passado e nos surpreendemos com modos de estruturação da escola que vêm da segunda metade do século XIX. Como diria Nóvoa (1995), as escolas continuam a manter as mesmas bases de todos os arranjos organizativos - espaciais, temporais, pedagógicos, disciplinares - determinantes das práticas dos professores e da regulação das atividades dos alunos.

2. Num trabalho recentemente publicado, a reflexão desenvolvida por Cabral & Alves (2016) em torno da organização pedagógica da escola e dos seus caminhos de possibilidades destaca sete teses, as quais, pela sua centralidade e pertinência no presente contexto, nos parece oportuno convocar:

i) a prevalência das políticas bottom up que reconheçam a capacidade das escolas se auto-organizarem na resolução dos seus próprios problemas criará mais facilmente condições para que estas possam melhorar as suas práticas e dinâmicas educativas e superar as suas fragilidades e constrangimentos;

ii) a rigidez da gramática escolar e a sua compartimentação na organização dos processos de ensino dos alunos como se fossem um só, não se coadunam com uma conceção de escola que vê o sucesso escolar como a sua condição natural, mas requer o equacionamento de novos modos de (re)agrupamento de alunos, de novas formas de gestão curricular e de diferenciação pedagógica, fomentadoras da criação de dinâmicas de trabalho colaborativo entre os professores levando-os a refletir e agir conjuntamente sobre as prática letivas e sobre o compromisso de cada um com a aprendizagem dos alunos;

iii) a alteração das variáveis organizacionais não implica por si só que se produzam transformações imediatas nos modos como se concretiza o trabalho pedagógico no espaço aula ainda que o induza de forma intensa e responsabilizante, daí que, e embora associado à dimensão anterior, o modo como se pensa e concretiza a ação estratégica no espaço aula, os métodos e recursos didáticos e a relação pedagógica que se estabelece com os alunos são variáveis determinantes na construção das possibilidades de sucesso;

iv) as lideranças, de topo e intermédias, para a aprendizagem e autorregulação dos processos e resultados, centradas na gestão curricular e pedagógica, conhecedoras dos modos de ensinar dos professores, povoadoras e indutoras de dinâmicas de implicação e compromisso na organização-escola, atentas às aprendizagens dos alunos e da comunidade, na utilização e gestão da informação como recurso, constituem importantes forças motrizes e fontes de energia no sulcar dos caminhos de possibilidades de maior equidade, eficiência e sucesso educativo e de desenvolvimento da escola;

v) a conceção e sustentabilidade de novos modos de ação pedagógica não se compadecem com visões unilaterais e espartilhadas da realidade mas requerem antes uma visão sistémica e integradora de culturas organizacionais e profissionais, olhando as coisas como parte de um todo com múltiplas interações entre as diversas estruturas na produção de respostas para a melhoria desse todo indivisível que é a ação educativa;

vi) as organizações escolares orientadas para a melhoria educativa constroem lógicas de ação em rede que lhes permitem ligar as pessoas a um conjunto de valores e ideias comuns, promovendo oportunidades de interação e colaboração mútuas e de aprendizagem com os outros, na base de uma ação conjunta e plural na procura de caminhos de possibilidades;

vii) numa escola que não foi inicialmente organizada para lidar com a diversidade mas onde a heterogeneidade da sua população escolar constitui hoje a sua principal marca educacional, a  referência do aluno médio como bússola pedagógica é falaciosa, não fazendo qualquer sentido basear e orientar os processos de organização do ensino para os alunos como se fossem um só e onde sob a capa do enriquecimento que deriva da heterogeneidade da turma e do grupo, ficam de fora da aula os alunos que estão no extremo da mediania e de fora da realização escolar sucedida invariavelmente os que estão no extremo inferior.

 3. Na perseguição do objetivo de promover um ensino de qualidade para todos, num quadro de valorização da igualdade de oportunidades e do aumento da eficiência e qualidade das escolas, emerge o Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar (PNPSE), criado através da Resolução do Conselho de Ministros nº 23/2016, de 24 de março, assumindo como princípio de orientação de base que são "as comunidades educativas quem melhor conhece os seus contextos, as dificuldades e potencialidades, sendo, por isso, quem está melhor preparado para encontrar soluções locais e conceber planos de ação estratégica, pensados ao nível de cada escola, com o objetivo de melhorar as práticas educativas e as aprendizagens dos alunos." (Preâmbulo RCM: 1195).

Não querendo ser exaustivos, ainda assim vale a pena sublinhar o enfoque que é dado à escola e aos seus profissionais, aos centros de formação e à comunidade educativa, designadamente pais e autarquias locais, face à necessidade imperativa de mobilizar os diferentes atores e instituições na criação e cimentação de uma cultura de compromisso social e educacional nos seus territórios. Em cada comunidade, a promoção do sucesso escolar de todos os seus alunos como condição natural da escola é um desígnio, que requer a construção de parcerias de convergência escolar entre as diversas estruturas socioeducativas na adoção e valorização de medidas indutoras de boas práticas. Neste enfoque territorial de corresponsabilização socioeducacional alargada, não só ganha espaço e sentido a estimulação e criação de dinâmicas locais na identificação dos problemas e fragilidades - tirando partido do conhecimento contextualmente produzido e experiencialmente adquirido - como se torna um imperativo o desenho e a definição local das dinâmicas de intervenção em resposta às fragilidades e necessidades especificas desses contextos e populações escolares.  

PNPSE: Princípios orientadores e instrumentos base

4. Na estratégia do Ministério da Educação no apoio às escolas e aos seus profissionais, emerge com especial destaque a formação contínua contextualizada de professores e formadores, através do relançamento e mobilização dos seus Centros de Formação de Associação de Escolas (CFAE) e do seu importante e reconhecido papel na formação contínua em contexto escolar. Este roteiro formativo em larga escala, ancorado em redes e estruturas locais de proximidade,  foi estrategicamente estruturado segundo três etapas sequenciais, duas das quais já concretizadas.

A primeira, dirigida à formação de formadores em "Planeamento da ação estratégica de promoção da qualidade das aprendizagens", decorreu em abril de 2016 em três diferentes locais - Évora, Leiria e Braga - e abrangeu um total de 160 formandos, indicados pelos CFAE e futuros formadores da segunda fase formativa. Nesta primeira etapa, a formação teve como objetivo orientar e capacitar os futuros formadores para, numa segunda etapa, em contexto de oficina, apoiarem os agrupamentos de escolas, quer na identificação e hierarquização das suas fragilidades e dos fatores mais relevantes associados ao trabalho pedagógico que dificultam as aprendizagens e influenciam negativamente os resultados escolares, quer na conceção dos planos de ação estratégica e respetivas medidas onde o agrupamento pretende centrar as suas ações de intervenção para superar as fragilidades diagnosticadas.

A segunda etapa formativa, organizada e dinamizada na modalidade de oficina pelos 91 CFAE do continente decorreu entre maio e junho de 2016  e foi direcionada, como já referimos, ao apoio à conceção e elaboração dos planos de ação estratégica, abrangendo um total de 156 grupos-turma e de 2811 formandos com responsabilidades de gestão escolar de topo (diretores) e intermédia (coordenadores de diretores de turma e do 1º ciclo). Os CFAE, pela sua natureza agregadora das escolas que lhes estão associadas, reúnem condições naturais para cimentar redes colaborativas de escolas assentes em lógicas e racionalidades negociadas e em meios que as próprias escolas associadas asseguram ao longo do tempo baseadas na confiança e reciprocidade. Estas redes colaborativas, constituídas de forma horizontal e na base de interesses comuns, partilharam nas oficinas de formação, de forma intensa e transversal, durante a segunda etapa formativa, problemas e dificuldades, mas também pensamento estratégico sobre possíveis soluções a construir para ultrapassar fragilidades e constrangimentos, sobre práticas já adotadas que funcionam, sobre conhecimento e adquiridos experienciais das múltiplas ações curriculares e organizacionais pedagógicas já implementadas com sucesso. Nesta partilha colaborativa e sinérgica ocorrida nos 156 grupos-turma, as escolas e os seus representantes foram autores do desenho da ordem pedagógica da escola, exploradores de caminhos de possibilidades, criadores de oportunidades, mobilizadores e agregadores de vontades, fontes de regulação alternativa dos processos de ensino e aprendizagem, construtores de verdadeiras possibilidades de territorialização de políticas educativas, agentes de interações regulares entre conhecimento e política local de educação.  Foram-no ainda mais, e especialmente, se no processo construtivo dos planos de ação estratégica dos seus agrupamentos, tiveram a sabedoria de envolver e implicar na sua construção estruturas e atores diversos da ordem educativa local. Como afirma João Barroso, "é esta complexidade de processos e esta pluralidade de atores e de espaços de atuação que criam as possibilidades e potencialidades da territorialização das políticas educativas e que permitem superar a visão estreita de simples modernização administrativa que parece estar subjacente a muitas das medidas tomadas no quadro da descentralização e da adoção de novos modos de regulação." (2013: 24).

A terceira etapa, tem como objetivo apoiar os docentes na implementação dos planos de ação estratégica de cada agrupamento, através de formação contínua contextualizada e tendo como referência de base as necessidades de formação manifestadas relativamente às medidas de cada plano. Neste novo cenário formativo, pretende-se enquadrar a formação contínua de docentes como uma oportunidade de resposta a constrangimentos organizacionais e profissionais, da escola e dos docentes, isto é, como um instrumento de capacitação de escolas e professores na reflexão sobre práticas locais e desenvolvimento de estratégias inovadoras e indutoras de processos de melhoria da qualidade das aprendizagens. A conceção e as condições para a implementação das medidas dos planos de ação estratégica dos agrupamentos não são dissociáveis das opções e prioridades de formação contínua sinalizadas e a operacionalizar. Pelo contrário, das necessidades fundamentadas de formação para apoio específico a medidas que se revelem essenciais na melhoria do trabalho pedagógico dependerá, em boa parte, não só a concretização de tais medidas mas sobretudo a qualidade dos processos inerentes à sua implementação.

5. No quadro das orientações relativas à elaboração dos planos de ação estratégica destacam-se duas dimensões: i) relevância pedagógica - concretizada em torno de medidas de caráter predominante preventivo (anos iniciais de ciclo), alteração de dinâmicas de trabalho em sala de aula, reforço do trabalho colaborativo dos docentes, centração na diferenciação e inovação pedagógicas; ii) sustentabilidade e eficiência das medidas - concretizada por critérios de rentabilização dos recursos internos e de custo-eficácia das medidas.

Quer ao nível das áreas de incidência, quer relativamente às respetivas necessidades de formação, os planos refletem fortemente as preocupações de relevância pedagógica sugeridas e as necessidades de formação acompanham essa mesma linha de orientação. Com efeito, no âmbito das necessidades de formação contínua explicitadas, manifestam-se três grandes domínios que tendem a atravessar os planos de ação estratégica das escolas: metodológico-didático, organizacional pedagógico, cívico-social. O primeiro dos domínios, do qual, de algum modo, os restantes são subsidiários, inclui a vertente das 'Metodologias e didáticas na docência', a vertente da gestão curricular, trabalho colaborativo e avaliação das aprendizagens e a vertente da diferenciação e inovação pedagógicas.  Da primeira vertente emergem com grande destaque áreas curriculares da Leitura e Escrita/Português, Matemática, Ensino Experimental das Ciências, Inglês; a segunda vertente, congrega uma forte incidência de manifestações de necessidades de formação em estratégias de trabalho colaborativo e articulação horizontal e vertical, monitorização e avaliação das aprendizagens, supervisão pedagógica e co-observação e gestão flexível do currículo; a terceira vertente, revela também uma forte incidência em necessidades de formação em estratégias de diferenciação e inovação pedagógicas, quer apoiadas em ambientes tecnológicos, quer alinhadas com as mesmas áreas curriculares da vertente metodológico-didática.

6.  A oportunidade de dispor de financiamento para a criação de respostas de formação contínua em contexto escolar adequadas às necessidades da organização escolar e dos docentes para apoiar a implementação das medidas de ação estratégica localmente definidas, abre novos espaços ao sentido estratégico da formação ao potenciar práticas de trabalho colaborativo e de articulação na gestão curricular dos grupos-turma, quer porque permite explorar contextos de aprendizagem na base do trabalho de projeto, quer porque permite desencadear soluções de transversalidade curricular e abrir mais facilmente espaço à realização de trabalho diferenciado com os alunos, da implicação destes em atividades de pesquisa e análise de informação, de exercitação do pensamento crítico e do desenvolvimento de competências de cidadania.

A formação contínua em contexto escolar, e em especial na modalidade de oficina, poderá ter agora, muito provavelmente, uma intencionalidade bastante objetiva, um foco muito direcionado e um propósito de utilidade reconhecida, ganhando um maior significado a partilha de metodologias, de materiais e instrumentos pedagógicos, de fontes curriculares, de critérios e práticas letivas. Nesta resposta formativa à medida, e sentida como necessária, porque cada um se identifica com ela e a concebeu como instrumento de apoio à melhoria das práticas educativas, tendem a ganhar maior espaço a cooperação entre as pessoas e através dela outras abordagens e modos de trabalho sustentadas em ambientes de aprendizagem mais abertos e flexíveis.

Nesta dicotomia, de classes heterogéneas, por um lado, e das dificuldades de ensinar na base de modelos de diferenciação pedagógica de modo a criar situações desafiantes e promotoras de aprendizagem para todos e cada um dos alunos, por outro, a busca de equilíbrios mobilizadores de novas formas de organizar e agrupar os alunos e os docentes, de gerir o currículo, de avaliar as aprendizagens e de integrar neste complexo e multirregulado processo soluções locais pensadas pelas escolas, em articulação com vários agentes educativos, residirão provavelmente algumas das chaves do processo educacional e dos seus desafios futuros. A natureza inclusiva dos objetivos da educação faz com que não possamos beneficiar uns alunos em detrimento de outros. E isso pode ocorrer involuntariamente, ora através dos modos como organizamos, gerimos e exploramos o currículo, como organizamos o tempo escolar e coordenamos e desenvolvemos a ação educativa, como agrupamos alunos e professores, como distribuímos e direcionamos os apoios educativos, como confiamos nas nossas capacidades de fazer um uso inteligente da autonomia, como sentimos e apropriamos as orientação de política educativa, como envolvemos e corresponsabilizamos os pais e os demais parceiros da comunidade local.

Na estratégia de apoio às escolas, o acompanhamento de proximidade projeta atividades não só com os diretores, enquanto coordenadores gerais do plano de ação estratégica, mas também com os coordenadores locais diretamente responsáveis por cada medida para identificação de dificuldades e verificação do grau de implementação das mesmas, de evolução e progresso dessas medidas e dos seus efeitos nas aprendizagens dos alunos. Num contexto escolar com um currículo extensíssimo em conteúdos que foram sendo progressivamente 'empilhados' para incorporar os avanços exponenciais do conhecimento produzido e que é preciso cumprir rigorosamente não deixando espaço à consolidação de aprendizagens, a formação em contexto escolar pode contribuir para a criação de oportunidades  de explorar e aprofundar outros modelos de organização e desenvolvimento do currículo, designadamente dando espaço à transversalidade curricular e à aprendizagem baseada em projetos agregadores de várias disciplinas e tarefas e em que diversas áreas de conhecimento e das expressões intervenham e se desenvolvam a par fomentando o desenvolvimento de competências de nível avançado - pesquisa, análise de informação, relação, transformação e criação de conhecimento.

Referências

Barroso, J. (2013). A emergência do local e os novos modos de regulação das políticas educativas. In J. Verdasca (ed.), A Escola em Análise: olhares sociopolíticos e organizacionais (13-25). Revista Educação, Temas e Problemas (Número Temático). Ano 6, 12-13.

Cabral, I. & Alves (2016). Condições políticas, organizacionais e profissionais da promoção do sucesso escolar - Ensaios de síntese. In J. Formosinho, J. Alves & J. Verdasca (org.), Nova Organização Pedagógica da Escola: caminhos de possibilidades (161-179). V. N. Gaia: Fundação Manuel Leão.

Nóvoa, A. (1995). Prefácio. In J. Barroso, Os Liceus, Organização Pedagógica e Administrativa (1836-1960). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica.

Resolução do Conselho de Ministros nº 23/2016, de 24 de março. Diário da República, 1ª Série - Nº 70 - 11 de abril de 2016, 1195-1196.

Semanário Expresso. Edição impressa de 19 de março de 2016.