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Quem quer ser pobrezinho? Da (in)utilidade da geografia

Miguel Castro
Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Portalegre, C3i, NCSHS

Após alguns anos (cerca de vinte e sete, para mim… menos um para a contagem de tempo serviço) a lecionar desde o 3º Ciclo até ao Ensino Superior Politécnico, passando pelo Secundário, sempre tive a firme decisão de não tentar entrar em concursos televisivos… “Caso, por algum desatino do destino (algo em que não acredito!), isso viesse a acontecer, já sabia a resposta à primeira pergunta que me fariam: - qual a sua profissão?

- Doméstico! Ganho mais por hora do que um professor! Mas tenho um “doutoramento” em limpar o pó, “puxar orelhas” a camas e fazer comida. Os inúteis professores nem têm tempo para cozinhar as refeições.

Com esta resposta estaria a salvo para falhar alguma capital de um país, ou saber o nome de um mar, ou golfo algures no planeta. Caso a resposta à profissão fosse “Professor de Geografia”, se falhasse algo tão óbvio como saber, sem hesitar, onde se situa o Golfo de Martaban, estaria a ecoar por todo o território nacional a frase: “É a isto que entregamos os nossos filhos para se prepararem para enfrentar a vida ativa?”; “Como é possível não saber esta pergunta? Eu que sou … bem posso ganhar mais que estes ignorantes que estão na escola e nem sequer conseguem que os miúdos saibam alguma coisa!”.

Assim, gosto de passar por doméstico, mesmo não indo à televisão! A tentativa de passar despercebido prende-se com o facto de acumular dois defeitos, que não são muito simpáticos para a população: Professor e Geógrafo. Quanto ao primeiro… nada a fazer! Gosto de lecionar. Gosto das crianças, dos adolescentes e dos pré-adultos, das aulas onde aprendemos várias coisas, geográficas ou não (não onde se situa o golfo de Martaban) e exerço a profissão de Professor de Geografia o melhor que sei e posso. Se quanto ao defeito de ser professor pouco posso fazer; relativamente ao segundo o caso torna-se mais sério (mas esse é que me é impossível mudar – sou GEÓGRAFO).

Todos os anos, logo no início dos períodos letivos, lanço estas questões aos meus alunos: “Se não fosse professor, sendo formado em Geografia, que profissão poderia eu ter que não esta? Quem me poderia dar emprego, nesta área? Para que serve um Geógrafo?

O longo silêncio transporta-me para a iminência de entrar no mundo dos “sem-abrigo”, do desemprego (não por ser professor, mas por acumular duas deficiências sociais – professor e geógrafo) e da exclusão social!

Mas afinal para que serve a Geografia? Podíamos abrir um longo espaço de silêncio (tal como os “meus” alunos) e por fim responder: para os concursos de televisão! Felizmente que, tanto eu como os meus colegas, não somos volumes (muito vistosamente) encadernados da Enciclopédia Britânica! Nem somos apenas transmissores de cultura geral (como muitas respostas de alunos e adultos apontam como sendo a utilidade da Geografia). Se ninguém, em áreas diversas da ciência, chegou a um consenso sobre o conceito de cultura, imaginem quando se irá chegar a um consenso, entre as diversas áreas do saber, sobre o conceito de “geral”! O mais evidente é que a Geografia continue, na cabeça do cidadão comum, a servir para treinar indivíduos para os concursos televisivos, onde se põem questões de Corografia, apresentando-as como se de Geografia se tratasse!

Mas afinal o que é e para que serve a Geografia? Qual o seu papel na escola e no quotidiano?

A Geografia, sem entrar em polémicas conceptuais, mais ou menos profundas, constata, analisa, estuda e explica os processos espaciais, utilizando o método científico, respondendo a questões humanas, nas diversas escalas de análise em que estas se refletem. As atividades humanas têm sempre uma expressão no espaço; a Geografia explica e justifica o onde e o porquê de determinada organização espacial. Sendo o impacto espacial das ações humanas fruto de uma enorme complexidade de fatores, que determinam a tomada de decisões, a abordagem geográfica é diferente porque é sintética, no sentido de conseguir estabelecer pontes, na sua explicação e análise, entre as diversas áreas do saber que estão expressas na marca espacial que podemos observar. “A Geografia é a ciência da Terra, no conjunto e na diversidade”.[1]

Não pode existir ordenamento urbano, ou ordenamento do território sem Geografia; não se pode compreender na totalidade os problemas que atualmente assolam o Médio Oriente sem a abordagem geográfica e geopolítica. Os problemas ambientais perdem significado global se forem encarados numa ótica estritamente ecológica ou biológica; a abordagem geográfica é integradora e dá-lhes significado; aponta as inter-relações humanas, sociais e culturais e o seu reflexo espacial – isto é, Geografia.

A partir desta perspetiva, já podemos começar a ampliar o mercado de trabalho dos geógrafos! Mas, não obstante este infinito mercado laboral que se abre, nunca devemos esquecer o papel da Geografia na formação holística e integral das pessoas e das populações, ou seja, o papel educativo e pedagógico desta ciência – ser professor de Geografia toma, assim, um outro significado menos redutor do que preparar alunos para concursos. A tomada de consciência da importância do espaço, da interiorização do mesmo e da compreensão da interligação dos fenómenos é essencial que seja transmitida aos alunos, a começar no pré-escolar. A formação de cidadãos críticos, interventivos e participativos é a base da sociedade que queremos e cremos cada vez mais democrática e consciente do espaço cada vez mais global onde habitamos.

Nesta perspetiva, a importância da criação de uma postura geográfica, analítica e crítica face à realidade mediática global, que é omnipresente, torna o papel do professor de Geografia central na formação de cidadãos e populações pós-modernas.

Cabe ao professor de Geografia interpretar a realidade mediática com os alunos. A abordagem dos temas dos programas de Geografia deve ser frequentemente realizada a partir de temas do quotidiano, de forma lúdica, mas que destaque a utilidade da ciência geográfica. Como entender a realidade atual da Crimeia e da Ucrânia sem ter em conta a Geografia da “Guerra-fria”? Ou a importância que teve a decisão, mal analisada geograficamente, do ataque a Gallipoli e a batalha pelo controlo do Estreito dos Dardanelos, na I Grande Guerra, que custou milhares de vidas? A análise das relações políticas e militares no espaço terrestre ajuda a compreender os acontecimentos. Ainda nesta região, as questões do Estado Islâmico, do Curdistão e das tensões entre Sunitas e Xiitas só são cabalmente compreendidas se analisadas de forma integrada, ou seja, geograficamente. Samuel Huntington, no seu “Choque de Civilizações”, recorre à análise geográfica para identificar as fraturas civilizacionais; Ives Lacoste, na “Geopolítica do Mediterrâneo”, enfatiza a importância da análise geográfica para a perceção da volatilidade desta área do globo.

Não pretendemos dizer que tudo se resume a Geografia, mas apenas enfatizar a necessidade central desta análise para a compreensão das realidades mediáticas atuais e futuras. Como entender as relações políticas sem as enquadrar espacialmente? É esta visão integradora e sintetizadora que torna a Geografia tão importante na formação dos alunos. Ela é central e transversal aos currículos dos vários níveis de ensino. Deveria assumir-se como pivot de projetos de escola transdisciplinares.

Os colegas de outras disciplinas deveriam pedir aos geógrafos, face à idiossincrasia da sua disciplina, a função de organizar e implementar projetos trans- e interdisciplinares; aos meus colegas competirá a apresentação de propostas capazes de integrar saberes e ajudar os alunos a construir o seu próprio conhecimento a partir dos vários conhecimentos científicos que vão adquirindo ao longo do seu percurso académico. Os próprios horários deveriam permitir a flexibilidade de implementação de projetos. Numa manhã de História, Geografia, Língua Estrangeira e Ciências da Natureza, não faz sentido compartimentar conhecimentos. Projetos comuns deveriam ser implementados: como entender o fenómeno migratório sem a participação destas áreas do saber? Como entender cabalmente o envelhecimento da população portuguesa sem recorrer, pelo menos, a conteúdos dos programas de Geografia, História, Ciências e Matemática? No nível secundário, dependendo da Área Específica, outras disciplinas poderiam, e deveriam, contribuir para o entendimento de um fenómeno – por exemplo, as migrações, que não se resumem à mudança de local de residência. Para além do óbvio fluxo entre locais, as causas e consequências são complexas e requerem vários saberes para a sua compreensão. No entanto, sem a análise espacial e uma abordagem multi-escalar e integradora, perde-se o “todo” e ficamos por parcelas que, do ponto de vista dos alunos, ainda sem prática de análise global, parecem desconexas e… “matérias diferentes de disciplinas diferentes”.

Estudar para o teste de História, de Inglês, de Geografia, de Matemática ou de Educação Física, são todos maus bocados da vida do estudante. Como é possível que se encontre nos conteúdos de Geografia, História, Inglês, Economia, passando, direta ou indiretamente, por Filosofia, Português, Biologia (Ciências da Natureza) ou Sociologia, o estudo do que se convencionou denominar Revolução Industrial, sem que seja sequer sugerida uma abordagem integradora? Quando compartimentamos análises a um fenómeno, compartimentamos “cabeças e cérebros” nas formas de o compreender e estudar. Servem para passar nos exames e nas diversas provas, mas não transmitem a noção integrada dos fenómenos humanos e naturais tal como na realidade eles ocorrem, na sua extrema complexidade e/ou fascinante simplicidade.     

Para que tal possa acontecer, algumas práticas terão que ser, paulatinamente, alteradas. O primeiro aspeto é trazer para as aulas o que está fora da escola e que a mediatização nos “obriga” a ter em conta. Seguidamente, (re)transformar a realidade mediática em análises específicas das várias ciências e saberes, desconstruindo-as e reconstruindo-as numa perspetiva, integrada e integradora, que se torne conhecimento, passível de reflexão crítica e aplicável no olhar para a realidade. Algo que não se confina a um empilhar de factos e nomes de fenómenos ou ocorrências, que não formam alunos mais ativos ou participativos na vida dos seus locais, regiões ou país.  

Nunca os alunos tiveram acesso a tanta quantidade de informação como hoje; mas, também, nunca se teve tão pouco tempo, como atualmente, para a selecionar, refletir e a analisar de forma global. À Escola cabe também esse papel. Não queremos alunos que saibam “muitas coisas” e ganhem concursos, mas jovens que olhem o quotidiano, compreendendo-o, analisando-o e contribuindo para a sua transformação.

À Geografia, na Escola, cabe o papel de fazer a síntese, espacializá-la e abordá-la nas diferentes perspetivas e escalas de análise. Não podemos lecionar o programa do início até ao fim, seguindo os conteúdos e sequências pedagógicas, tal como nos são enviadas nos programas e documentos orientadores. A partir de problemas reais, atuais, que fazem parte, pela mediatização, da vida dos alunos, deve abordar-se de forma integrada (e também com outras áreas do saber) vários conteúdos programáticos que, não sendo sequenciais, se enquadram no âmbito dos programas, partindo de metodologia por projeto e de resolução de problemas.

Como operacionalizar? Voltamos ao exemplo do programa da Geografia – migrações, que é transversal a outras disciplinas. É um fenómeno atual, falado, lido, debatido, escutado e visto todas as semanas nas suas múltiplas facetas com que a realidade mediática nos “bombardeia”. Será que os alunos estão atentos a este fenómeno? Talvez não na sua complexidade, mas de certeza que já ouviram, leram ou viram imagens. A pergunta de partida é simples: porque que se emigra?

A partir desta questão, e tendo por base a metodologia de projeto, com atividades lúdicas e a resolução colaborativa de problemas, podemos abarcar uma quase infindável quantidade de conteúdos e unidades didáticas, para além de estabelecer pontes com outras disciplinas.

Para onde se emigra? Estudar fluxos a nível global, regional/europeu e nacional. A partir deste estudo e da sua espacialização podemos abordar, nos três níveis (global, regional e nacional), pelo menos três aspetos: distribuição das atividades económicas (causas e consequências nas áreas de partida e de acolhimento); distribuição urbana (causas e consequências nas áreas de partida e de acolhimento); distribuição da população (causas e consequências nas áreas de partida e de acolhimento). Do estudo destes temas, e dependendo da densidade e distribuição espacial destes fenómenos, podem abordar-se aspetos do emprego/desemprego/precariedade do emprego; problemas urbanos: organização urbana (organização interna das cidades modernas/ transição da cidade moderna para a pós-moderna/smart cities/segregação social do espaço /fragmentação do espaço urbano/conflitos sociais/xenofobia/políticas de emigração e acolhimento de populações/ política de fronteiras/espaço Schengen/ Europa fortaleza/Europa sem fronteiras internas/os espaços fronteiriços e a cooperação transfronteiriça/ as Eurocidades (AECT) na União e em Portugal). Ainda a partir da distribuição da população e dos seus movimentos, podemos estudar os ciclos de evolução do sistema capitalista (crises, depressões e ciclos de expansão, etc…); os problemas do desenvolvimento-crescimento-coesão social-coesão territorial; porque é que tantas pessoas arriscam atravessar o Mediterrâneo até à Europa?/o “mare nostrum” dos romanos será ainda o centro do mundo, ou o eixo está no Pacífico e porquê? Sempre espacializando os fenómenos ligados ao início – migrações, a Geografia física pode não ficar de fora. As causas do esgotamento dos recursos naturais, da gestão dos espaços agrícolas e naturais, as alterações climáticas e os fenómenos meteorológicos extremos (cada vez mais frequentes) e catástrofes naturais, ajudam a explicar deslocações populacionais. Os problemas ecológicos e a sustentabilidade do planeta são tópicos de discussão, debate e tomada de consciência pelos alunos. O envelhecimento demográfico, políticas natalistas/anti natalistas; a velha Europa e o jovem Magreb; o terrorismo e as tensões religiosas, as políticas de defesa, são aspetos cruciais para explicar e questionar a posição de Portugal no mundo e no contexto europeu…

Apenas nesta breve amostra, unicamente a partir de um tema do programa, foi possível viajar pelos conteúdos programáticos, de forma não sequencial mas, sem dúvida, mais lógica, interligada e de acordo com a realidade. Tentando seguir o programa de forma sequencial e desconexa das realidades que entram nas casas dos alunos todos os dias, ficamos pelo empilhar de conteúdos que, posteriormente, os alunos compartimentam entre escola e o mundo real “lá fora”, não tendo o olhar crítico e reflexivo que o ensino e a escola devem proporcionar. Até o velho futebol pode ser um bom aliado. Recentemente, um português ganhou, pela terceira vez a “Bola de Ouro”. Difícil escutar/ver, nestes dias, algo diferente, mesmo que alternando freneticamente de canal. Porque não usar o futebol e a exaustão noticiosa para as aulas? Qual a densidade da distribuição geográfica das equipas de futebol no nosso país? Norte/sul; litoral/interior (num país de reduzidas dimensões estas dicotomias fazem sentido?)? Sobreponhamos a distribuição espacial das equipas de futebol no território nacional aos mapas da densidade populacional e Valor Acrescentado Bruto das Empresas e verificamos que são quase sobreponíveis. Para o futebol são necessários contingentes de jovens aspirantes a “Ronaldos”, para filtrar aqueles que realmente têm hipóteses de singrar. Empresas e atividade económica suficiente para suportar esses clubes são necessárias e, por fim, áreas onde o emprego e o dinamismo da economia possam suportar uma população jovem e em quantidade para consumir, encher estádios e ter uma taxa de natalidade forte para sustentar os fatores que atrás se referiram.

Como operacionalizar esta catadupa de interligações e ideias? De forma lúdica e sempre ligada à realidade quotidiana, ainda que esta seja frívola e aparentemente oca. Construir atividades lúdicas de pesquisa e cruzamento de informação, que possa ser espacializada, leva a que os alunos se interessem, num duplo sentido: começam a “ler” a realidade e, na sua pesquisa, refletem sobre a mesma.

O lúdico é utilizado, propositadamente, em detrimento do jogo pois possui um significado pedagógico diferente. Com a transformação de atividades pedagógicas em jogo, estimulamos, por vezes, a competitividade e a ânsia de ganhar, mais do que o prazer de aprender de forma descontraída, mas séria. Lúdico não significa apenas jogo. É também atividade que dá prazer ou diverte. Aprender de forma divertida não significa aprender ou estudar conceitos pouco profundamente ou de maneira cientificamente pouco exata. Todos aprendemos a brincar descontraidamente. Se Watson e Crick não estivessem a brincar com os modelos das bases que constituem o ADN, provavelmente só atingiriam os seus resultados mais tarde, ou nunca. Provavelmente, se Darwin não tirasse prazer na observação da natureza enquanto esteve nas Galápagos, quando anos mais tarde construiu a Teoria da Evolução, na “Origem das Espécies”, não teria conseguido elaborar e ter todos os elementos necessários para concretizar as suas ideias. A nossa espécie aprende com a brincadeira. Brincar é coisa séria e brincar com a Geografia… só pode resultar em ótimos resultados! Boa educação espacial está sempre ligada ao maior desenvolvimento de um país. “Ludus Humanus Est”!          


 

[1] Orlando Ribeiro, apud Malheiros, Jorge (2011). O que eu preciso saber sobre Geografia. Visão, 1 Setembro 2011. Lisboa