PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

 

Nadar ou Naufragar?
A Formação Contínua de Professores na Metamorfose do Mundo

Eusébio Machado
Coordenador da Equipa Nacional do Projeto MAIA
Universidade Portucalense

 

And you better start swimmin'

Or you'll sink like a stone

Bob Dylan, The times they are a-changin'

O sistema de formação contínua de professores (FCP) em Portugal atingiu três décadas de existência - o que não deixa de ser surpreendente num país que é marcado mais pela descontinuidade do que pela continuidade, mais pela desistência do que pela persistência, enfim, mais pela inconsequência do que pela consequência. De resto, talvez seja esta capacidade de resistir, face às mudanças inexoráveis dos tempos, das políticas e dos atores, que explica, mesmo que parcialmente, o reconhecimento da sua indispensabilidade no desenvolvimento profissional dos professores e, por inerência, na capacidade de resposta do sistema educativo face às mudanças mais radicais, profundas e disruptivas de que há memória no que respeita à transmissão do saber, aos processos de socialização e à aquisição das competências profissionais. Com efeito, a obsolescência da “formação inicial”, em todas as profissões e domínios do saber, nunca foi tão vertiginosa como nos nossos dias, bastando lembrar que uma parte bem significativa dos professores no ativo adquiriram as suas competências profissionais numa época em que computadores pessoais eram ainda protótipos feitos por adolescentes de Seattle e a internet surgia como uma experiência esquisita de visionários da tecnologia.

Mas, no caso mais concreto de Portugal, é possível argumentar que a indispensabilidade do sistema de formação contínua é, outrossim, o resultado concomitante da necessidade de sustentar “reformas educativas” e executar “fundos europeus”, o que, no final de contas, tem conferido à FCP um carácter instrumental e contingente, resultando numa forte lógica “instituída” de responder às necessidades do sistema – e não dos professores, das escolas e dos respetivos territórios de ação. A FCP em Portugal tem servido as políticas educativas, mas sem que haja uma política de FCP que sirva as políticas educativas, com visão estratégica e numa atitude proativa relativamente às transformações societais em geral e às transformações da educação e da escola em particular. Há, pois, muitas agendas para a FCP, mas não há uma agenda da FCP, mesmo que, neste quadro mais geral, não deixe de haver outros caminhos, forte sentido de agência, visão emancipatória e sentido dos territórios, o que, larga medida, se tem devido à ação dos Centros de Formação de Associação de Escolas (CFAE).

Ora, o principal argumento que pretendemos sustentar é que, no atual estado de transformações, a FCP precisa de uma agenda que permita aos professores e às escolas responder aos desafios complexos e estruturais que conformam os tempos que vivemos, sem a pressão da resposta pontual e fugidia que rapidamente se dissolve no ar e cuja única utilidade é resolver urgências e problemas superficiais. Trata-se de uma agenda que deve tomar consciência radical (leia-se: até às raízes) do conjunto de problemas emergentes e que, provavelmente pela primeira vez na nossa história, colocam em risco o próprio sentido de ser professor e os modos de socialização que a escola instituiu nas nossas sociedades.

Nós, professores, vivemos tempos de certezas ou, pelo menos, tempos em que tínhamos mais certezas do que dúvidas, tempos arcádicos em que tudo parecia ter sentido, tempos em que caminhávamos num chão sólido, tempos em que havia muito mais passado seguro do que futuro incerto… O nosso espaço de referência na tarefa educar e socializar era claro e tangível: era o nosso país, com os seus mitos e as suas histórias, a sua língua e o seu património, a sua identidade e o seu projeto coletivo. Educávamos e formávamos cidadãos portugueses, para viver em Portugal e no seio da nossa cultura… O nosso saber de referência também era claro e tangível: era um currículo destinado à transmissão de saberes bem definidos, dos quais éramos praticamente os únicos fiéis depositários, trabalhando com objetos analógicos e físicos chamados livros... A nossa identidade, enquanto cidadãos e professores, não deixava de ser igualmente clara e tangível:  havia um sentido na nossa profissão, sem ruturas identitárias, face à prevalência de uma cultura única e hegemónica, fosse a língua, a axiologia, a cultura ou o género, o que conferia também uma direção cristalina à socialização dos alunos na escola. Ora, estes tempos acabaram e as respostas que tínhamos deixaram servir para as perguntas que a nossa profissão nos coloca todos os dias. Para esta “metamorfose do mundo” (Beck, 2017), na qual as velhas certezas deixam de ser resposta para os novos desafios, contribuiu a conjugação de, pelo menos, três transformações: a globalização, a digitalização e a dessocialização.

Antes de mais, convém ter em conta que a globalização não é um fenómeno atual, nem uma dinâmica isolada. As metamorfoses a que estamos a assistir devem ser vistas, sobretudo, a partir de dinâmicas de aceleração e de sinergia, as quais, pela primeira vez na história, estão a provocar a radicalização de vários processos, entre os quais, pelo seu efeito na profissão docente, importa ressaltar os seguintes: a performatividade, a pluriescalaridade e o multiculturalismo.

a) A performatividade (Lyotard, 1976), ao submeter o saber a um mero valor de uso, acarreta um efeito devastador sobre a profissão docente e a instituição escolar: o sentido de aprender, de ensinar e de frequentar a escola justifica-se apenas pela sua capacidade desenvolvimento competências performativas, úteis para o funcionamento das economias e para o regime de competição mundial. O abandono da narrativa emancipatória, coloca os professores sobre a pressão dos resultados, da avaliação de desempenho e do mercado da educação.

b) A pluriescalaridade do mundo em que vivemos caracteriza-se pelo facto de o Estado-Nação ter deixado de ser a única referência identitária, verificando-se a emergência de uma condição paradoxal de várias escalas: somos “patriotas cosmopolitas” (Appiah, 1997), tanto vinculados ao local, como abertos ao mundo. Esta situação de identidades sem fronteiras e que circulam em várias escalas suscitam desafios que a escola os professores nunca tiveram. Neste contexto, as respostas às questões básicas tornam-se altamente complexas: que aprender? que currículo (local, nacional ou mundial)? que identidade(s)? que cultura (a nossa, a dos outros ou todas porque todas são igualmente válidas)?

c) Se a pluriescalaridade é o fenómeno que nos obriga olhar para o mundo de muitas culturas que existem fora de nós, o multiculturalismo, por sua vez, é o fenómeno que nos confronta o mundo de muitas culturas que começa a existir dentro de nós, quer enquanto indivíduos, quer enquanto comunidades. Na vida das escolas e dos professores, a diversidade não é uma questão teórica; é um problema prático, sobretudo porque as exigências de inclusão e de coesão social  felizmente são cada vez mais acentuadas. Neste sentido, ser professor e trabalhar em escolas nestes nossos tempos é tarefa exponencialmente exigente e desafiante, pois a diversidade não é contível na “gramática escolar” que vigorou mais de três séculos; a diversidade, independentemente dos nossos desejos e capacidades, destrói a escola na qual todos fomos socializados e da qual alguns ainda vertem lágrimas de saudade.

Por sua vez, a digitalização, para além de ser uma forma de lançar gasolina no incêndio da globalização, acabou com quaisquer privilégios e monopólios de acesso à informação. A escola e o professor ficaram desapossados da autoridade do conhecimento e da iniciação ao saber. Houve tempos em que se podia afirmar que era preciso ir à escola para receber um conhecimento que não existia no mundo, hoje vivemos tempos em que se pode argumentar que é preciso sair da escola para adquirir o conhecimento que existe no mundo. Tudo o que precisamos de aprender é universal, imediata e gratuitamente acessível – mesmo que a era da digitalização, paradoxalmente, não nos tenha libertado da estupidez, da ignorância e do obscurantismo. Se a profissão docente, como uma das mais antigas e nobres “antropotécnicas” (Sloterdijk, 2018), consiste num processo de mediação (de memórias, de saberes, de competências), então este mundo digital do imediatismo constitui-se como o lugar da sua extinção. É certo, em todo o caso, que bem constatamos que, pelo contrário, na era do imediatismo universal (das relações, das notícias, das políticas…), as mediações, como é caso da mediação docente, são ainda mais necessárias; mas o rumo do tempo e das sociedades não permite alimentar ilusões. O nosso mundo é contactless.

Por último, estamos também assistir a um fenómeno social, profundamente agravado pela pandemia, de perda de sentido dos outros, de ausência de preocupação pelo bem comum e, pior que tudo, de atomização da vida de cada um – estamos a viver tempos de uma acelerada dessocialização, cujo sintoma mais evidente e grave é a solidão (Hertz, 2021). Neste contexto, que sentido para a escola e para a profissão docente, sendo certo que o âmago da sua razão de ser  é este trânsito socializador entre as antigas e as novas gerações? Esta dessocialização deve ser vista em função do concurso simultâneo da globalização e da digitalização: por um lado, a globalização retirou sentido aos modos de socialização hard do passado, abrindo espaço para socializações transitórias, superficiais e contingentes; por outro lado, digitalização tem alimentado a ilusão de relações humanas a distância e desterritorializadas, sendo que uma das mais principais vítimas é a escola. A digitalização e, mais recentemente, a pandemia, deram início à construção da escola como um “não-lugar” (Augé, 1994), mediado por ecrãs, sendo certo, no entanto, que não há construção de humanidade sem a presença dos outros, como sempre aconteceu entre os seres humanos.

Face a esta situação, que caminhos para a FCP? Apresentamos, de seguida, algumas hipóteses sem carácter exaustivo e preocupação sistemática:

1.ª hipótese: a dimensão colaborativa e colegial da FCP deve ser central e formação individual e isolada deve ser residual, ao contrário do que sucede hoje em dia, fruto da ideologia da “aprendizagem ao longo da vida” como exigência exclusivamente individual. Neste sentido, as modalidades de formação mais centradas na partilha, na discussão, no confronto de ideias, no desenvolvimento de projetos colaborativos necessitam de ser reforçadas, sob pena um reforço dos deslassamento do sentido do comum da profissão docente e da dessocialização dos processos educativos.

2.ª hipótese: a obsessão do praticismo cego que tomou conta da FCP precisa rapidamente de ser articulado com a injunção de conhecimentos teóricos e científicos, sem os quais nunca haverá boas e efetivas práticas. Segundo Paulo Freire, “a educação, qualquer que seja ela, é sempre uma teoria do conhecimento posta em prática”. A pressão da performatividade tem feito com que a FCP seja encarada como mera estratégia de remediação e de reação, a título individual, para a qual se procuram soluções que estão cada vez mais condenadas à obsolescência. Neste aspeto, o avassalador investimento no praticismo das soluções digitais na ausência de boas teorias pedagógicas tem dado origem a uma espécie de trabalho de Sísifo.

3.ª hipótese: o analógico e o digital devem permitir a emergência de um terceiro lugar, sob pena de a FCP acentuar a desterritorialização, a desumanização e dessocialização que estão a roer o sentido da escola e da profissão docente. Não vale a pena criar dicotomias redutoras num mundo de desafios complexos, uma vez que a digitalização se apresenta como uma onda que tudo arrasta atrás de si. Mas FCP não pode, antes pelo contrário, deixar de acentuar o território da escola (os seus espaços e das suas relações) como ecossistema privilegiado de desenvolvimento do conhecimento profissional;

4.º hipótese: o cisma entre as Instituições de Ensino Superior (IES), que têm o monopólio da formação inicial, e os CFAE, que têm, de facto, o monopólio da formação contínua, assenta em visões caducas, ultrapassadas e destituídas de qualquer sentido, alimentando oposições paupérrimas entre teóricos e práticos, entre saberes científicos e saberes pedagógicos, entre a exigência e o facilitismo. Neste momento, o que está em causa é a construção de um saber profissional que reclama uma relação fortemente imbricada entre a formação inicial e a formação contínua, entre os lugares da teoria e os lugares da ação, o que apenas será possível num modelo de FCP que situado na charneira entre as IES e os CFAE.

5.º hipótese:  o ser multidimensional do professor, designadamente nas suas dimensões éticas e emocionais, precisa urgentemente de ganhar lastro. A escola líquida que está a emergir, como lugar único de mediação num mundo sem mediações, como um único lugar de socialização num mundo dessocializado, as competências socioemocionais serão cada vez mais importantes. Transformar a escola num lugar de humanidade e de humanização exigirá de todos nós um conhecimento profissional mais vasto, mais complexo e mais integrado, no qual a ética e as emoções terão um lugar indispensável.

Referências

 

Appiah, K. A. (1997). Cosmopolitan patriots. Critical Inquiry, 23 (3), 617.

Augé, M. (1994). Os não-lugares. Introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Bertrand Editora.

Beck, U. (2017). A metamorfose do mundo. Como as alterações climáticas estão a transformar a sociedade. Edições 70.

Hertz, N. (2021). O século da solidão. Como restaurar as relações humanas. Temas & Debates/Círculo de Leitores.

Lyotard, J.-F. (1976). La condition postmoderne. Editions de Minuit.

Sloterdijk, P. (2018). Tens de mudar de vida. Relógio d’Água.