PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

 

Entrevista PROFFORMA ao Professor Domingos Fernandes, Presidente do Conselho Nacional de Educação

Olímpia Mourato
CEFOPNA

 1. Num texto de opinião divulgado na VozProf (4/jun/22), que se intitulava: “Domingos Fernandes para presidir ao CNE? Total controlo de todos os organismos que regulam a Educação”, foi referido como “alguém que durante os últimos anos foi o principal mentor de grande parte das políticas desenvolvidas ao nível das metodologias pedagógicas e de avaliação implementadas pelos governos”.

Quer comentar esta afirmação?

Os comentadores das questões relacionadas com a educação são, com certeza, pessoas estimáveis e temos de reconhecer que a sua ação é legítima na vida social num país democrático. Há quem refira que os seus comentários contribuem positivamente para melhorar a qualidade da educação. Porém, eu tenho muita dificuldade em pronunciar-me acerca dos comentários que refere na sua pergunta porque não conheço a investigação que o autor desenvolveu acerca das questões de educação e nunca tive oportunidade para ler as suas publicações nas fontes que habitualmente consulto e estudo.

2. Num artigo publicado, em 2022, “Educação, sociedade e democracia: o legado de Goodlad”, o Professor Domingos Fernandes defendeu que “conhecer e compreender as escolas por dentro, por meio de pesquisas intensas e extensas, é incontornável no processo de transformação e melhoria da educação e das escolas”.

Quais são os maiores desafios nesta tarefa?

Tradicionalmente, a relação da nossa sociedade com o conhecimento não tem sido fácil. Isto significa, por exemplo, que, de modo geral, as pessoas aceitam facilmente que não é necessário estudar e investigar para conhecer e compreender as realidades sociais. Isto significa que o conhecimento fundamentado não é devidamente valorizado e, assim sendo, a opinião, o chamado achismo, acabam por ter uma expressão e uma preponderância que é pouco usual em sociedades em que a importância e o valor do conhecimento e dos processos que se utilizam para a sua produção, são reconhecidos e apropriados pelas pessoas. Parece que, entre nós, se aceita facilmente que se produzam afirmações supostamente verdadeiras, que, em rigor, não têm qualquer fundamentação credível.

Digo isto para responder à sua pergunta, sublinhando que só podemos promover políticas públicas que transformem e melhorem o trabalho das escolas se desenvolvermos as ações que se impõem para as conhecermos com a adequada profundidade. E tais ações passam necessariamente pelo desenvolvimento de investigação que nos ajude, por exemplo, a compreender como se ensina, como se aprende e como se avalia nas escolas ou a caracterizar relações entre as lideranças e as práticas pedagógicas dos professores e educadores. Ou seja, pela produção de conhecimento através do qual se possam tomar decisões mais informadas, mais sustentadas e mais sustentáveis. Este é, seguramente, um importante desafio a enfrentar.

3. Enquanto Presidente do Conselho Nacional de Educação e antigo Coordenador da Equipa Nacional do Projeto Maia, qual é a sua perspetiva presente sobre o trabalho que decorre nas escolas portuguesas no que concerne à avaliação pedagógica?

 Eu percebo e agradeço a sua questão, que me parece realmente relevante. No entanto, não gostaria de particularizar para o processo de avaliação pedagógica que, como sabe, está intrinsecamente associado, ou mesmo integrado, quer no processo de ensino, quer no processo de aprendizagem. São três processos inseparáveis e, deste modo, falar de um deles implica necessariamente falar acerca dos outros.

No fundo, se me permite esta liberdade de interpretação, a sua questão remete-nos para uma reflexão acerca dos fundamentos que, supostamente, estão a orientar as práticas pedagógicas nas escolas portuguesas. Dito de outro modo, poderemos refletir se as referidas práticas traduzem perspetivas das chamadas Pedagogias da Conformidade ou, pelo contrário, se baseiam nas perspetivas das Pedagogias Socialmente mais Justas. Esta é, na minha modesta opinião, a questão de fundo que envolve as conceções que os professores e educadores sustentam acerca da Pedagogia, do Currículo e da Avaliação. E, naturalmente, envolve as respetivas práticas pedagógicas nos domínios do ensino e da avaliação.

De modo geral, a investigação, quer nacional, quer internacional, tem vindo a evidenciar que as práticas pedagógicas tendem a seguir o modelo ancestral do professor que diz e do aluno que ouve e, neste sentido, a avaliação está exclusivamente orientada para verificar, normalmente através de testes, se o que foi dito é adequadamente reproduzido pelo aluno. Trata-se de uma visão redutora e pobre do que é o desenvolvimento do currículo, o ensino e a avaliação. Mas é, comprovadamente, um modelo que predomina numa diversidade de sistemas educativos, com especial destaque para os dos países Ibero-Americanos, e que remonta ao século XIX e às perspetivas associadas à ideia da escola como uma espécie de linha de produção fabril. E, nesse caso, a avaliação é sinónimo de medida (Avaliar é Medir) em vez de ser entendida como um processo pedagógico que permite que alunos e professores possam refletir acerca da qualidade do trabalho que ambos desenvolvem. Ou seja, avaliar é visto como um processo mais ou menos mecânico, mais ou menos algorítmico, para se obter uma classificação, em vez de ser entendido como um empreendimento humano, participado e eminentemente reflexivo, cujo principal propósito é distribuir feedback de qualidade para que os alunos aprendam melhor, com mais compreensão e profundidade.

Nos últimos anos, com o desenvolvimento e a disseminação das perspetivas cognitivistas, construtivistas e socioculturais da aprendizagem, das ideias relacionadas com o combate às desigualdades e com o imperativo de democratizar os sistemas educativos, as políticas públicas de educação têm vindo a evoluir positivamente. Na verdade, a materialização de tais políticas tem vindo a traduzir-se em projetos e programas que incorporam aquelas perspetivas e ideias.

4. Considera que a Avaliação Pedagógica preconizada no âmbito do Projeto MAIA é promotora da Inclusão nas escolas portuguesas?

 Não tenho qualquer dúvida acerca disso. Mas estou bem consciente de que o desenvolvimento de uma cultura de inovação em que a avaliação pedagógica é um processo indissociável do ensino e da aprendizagem tendo em vista, antes de tudo o mais, melhorar a qualidade das aprendizagens, é um enorme desafio porque questiona práticas que estão enraizadas nos sistemas educativos desde os finais do século XIX... Philippe Perrenoud, disse-nos um dia que mudar a avaliação e as suas práticas, era mudar a Escola. Por aqui já vemos a dimensão do desafio que temos pela frente. Mas a verdade é que, apesar das múltiplas dificuldades e dos obstáculos mais ou menos absurdos, as políticas públicas, como referi, vêm evoluindo positivamente e tem sido feita uma aposta que me parece acertada na formação contínua dos professores e educadores.

5. O Professor Júlio Pedrosa, antigo Ministro da Educação (2001-2002), num artigo de opinião, “Avaliar para promover e melhorar as aprendizagens” (8/julho/2022), debruçando-se sobre as temáticas da avaliação em educação e os rankings, citou o Professor Domingos Fernandes: “(…) pode entender-se que um dos especialistas, o Professor Domingos Fernandes, hoje presidente do Conselho Nacional de Educação, nos diga que “a avaliação educacional vem sendo considerada cada vez mais indispensável para descrever, compreender e agir sobre uma grande variedade de problemas que afetam os sistemas educativos e formativos”.

Considera que as mudanças e melhorias na Educação em geral dependem da forma como os docentes assumem e operacionalizam a avaliação pedagógica nas salas de aula?

Sim, mas não só. Não fará sentido considerar a avaliação por si só, desligada do ensino e da aprendizagem. Mas também não podemos ignorar que melhorar a qualidade do ensino e da educação passa necessariamente pelo desenvolvimento de perspetivas progressivas acerca de aspetos tão relevantes tais como a Escola, o Currículo e a Pedagogia. É preciso que os principais intervenientes se apropriem do conhecimento que tem sido produzido nas últimas décadas no domínio da Educação. 

6. Ainda tendo em atenção a questão anterior, quais são os problemas mais difíceis de resolver? Porque persistem, caso considere que não estão resolvidos?

 Há sempre muitos problemas difíceis para resolver em tudo o que se relaciona com a melhoria da educação e do ensino e, se quisermos, com o desenvolvimento e democratização dos sistemas educativos. Para mim, o mais complexo é o da qualidade dos processos de formação e qualificação dos professores e das lideranças das escolas. Sem professores e lideranças altamente qualificados não é possível melhorar a qualidade do ensino e sem ensino de qualidade não podemos ter uma Educação que, por exemplo, seja consistente com os desígnios propostos e implícitos no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (PASEO).

7. No mesmo artigo, da autoria do Professor Júlio Pedrosa, o mesmo afirmou: “Diria, enfim, que os contextos que vivemos, a publicação sistemática dos resultados de avaliações de aprendizagens nas escolas e o seu uso para apresentar rankings deviam ser entendidos como catalisadores de desenvolvimentos e avanços na promoção de melhor Educação, envolvendo todos os principais grupos de interessados.”

Qual é a sua opinião sobre os efeitos que os rankings provocam na Educação em geral e nas escolas em particular? Concorda com o Professor Júlio Pedrosa?

 A investigação tem evidenciado que os rankings acentuam significativamente os efeitos mais nefastos dos exames tais como: a) o empobrecimento ou estreitamento do currículo, que consiste na tendência para as escolas, os professores, os alunos e os pais e encarregados de educação, centrarem os seus esforços e a sua atenção nas disciplinas que são objeto de exame, desvalorizando todas as outras; isto significa que é duvidoso que o currículo possa ser devidamente cumprido, nomeadamente no que se refere ao desenvolvimento dos conhecimentos, das competências e das atitudes previstas no PASEO; b) a utilização de estratégias por parte das escolas tais como as que consistem em aconselhar alunos a anular as suas matrículas para realizarem os seus exames como autopropostos, em constituir turmas com alunos que se revelam mais promissores e em incentivar a procura de apoios suplementares na indústria das explicações, há muito instituída entre nós; e c) a utilização deliberada e sistemática de uma diversidade de práticas fraudulentas que estão devidamente tipificadas há muitos anos na literatura internacional e, mais recentemente, na literatura produzida em Portugal. (Os exames podem ter efeitos positivos, sobretudo ao nível da regulação das classificações internas dos alunos e do que, e como, se ensina, mas os seus efeitos nefastos ainda superam largamente os que podem ser considerados benéficos.)

 Há em toda esta questão uma forte componente política e ideológica que parte da ideia de que os rankings são indicadores fiáveis e credíveis acerca da qualidade da educação. E o que a investigação e as ideias fundamentadas nos vêm mostrando é que os rankings são profundamente redutores e que nos dizem relativamente pouco acerca da qualidade do ensino, da educação e, mais genericamente, acerca da qualidade da Escola.

Temos de prosseguir esforços para construir sistemas de informação mais credíveis e mais transparentes que nos permitam conhecer e compreender o trabalho que se realiza nas escolas e que produzam informação acerca das reais aprendizagens desenvolvidas pelos alunos. Penso que numa diversidade de países, incluindo o nosso, já se começou a trabalhar no sentido de se criarem sistemas alternativos, que sejam credíveis dos pontos de vista social e científico e que permitam discernir o que os alunos sabem e são capazes de fazer tendo em vista os referentes curriculares mais fundamentais em vigor como é, em Portugal, o caso do PASEO. Ou seja, temos de construir um sistema mais orientado pelos desígnios fundamentais da Educação sem cair em lógicas mercantilistas que, no fundo, estão na base dos chamados rankings. Parece-me, assim, que precisamos de sistemas que nos ajudem a prestar um melhor serviço de educação e isso implica que se tenha em conta a diversidade de percursos educativos e formativos dos alunos. Outra ideia tem a ver com a necessidade de se ir articulando cada vez mais profundamente a avaliação interna e a avaliação externa das aprendizagens, nomeadamente através da distribuição de feedback às escolas, aos alunos e aos seus pais e encarregados de educação. Como é óbvio, quem tem de ser responsável pelas políticas públicas de educação que traduzam estas ideias é o Ministério da Educação e não quem produz os rankings que terá, naturalmente, uma outra agenda e outros interesses e valores a defender.

Não sei se compreendi bem o que o Professor Júlio Pedrosa nos quis dizer. Mas estarei sempre de acordo com ele no que se refere à necessidade de melhorarmos a qualidade do ensino, da educação e das aprendizagens dos alunos, tendo em conta, naturalmente, as ideias que, muito sucintamente, acima referi.

8. Neste momento, enquanto Presidente do Conselho Nacional de Educação, continua a defender a ideia segundo a qual os CFAE são parceiros estratégicos e indispensáveis para a implementação dos projetos emanados do Ministério da Educação?

Sem dúvida. Desde sempre pensei que os CFAE tinham um enorme potencial para materializar programas e projetos de formação fundamentais para a melhoria da qualidade do ensino e da educação. Além disso, também sempre me pareceu que os CFAE, através do seu conselho de diretores, podiam ser instâncias muito relevantes para que as escolas e os agrupamentos pudessem pensar e trabalhar colaborativamente para resolver uma diversidade de problemas. É muito importante desenvolver pensamento crítico acerca do papel dos CFAE e das ações que têm empreendido, nomeadamente no domínio da formação contínua de professores e educadores. Julgo que os CFAE são talvez as estruturas mais relevantes para poder desenvolver uma cultura de inovação pedagógica nas escolas. Mas isso, como tudo, exige um forte investimento nos recursos humanos para melhorar inequívoca e significativamente a qualidade da formação. 

9. Considera que a Formação Contínua de Professores foi travada ou prejudicada, em tempos de pandemia, ou, por outro lado, se abriram novas janelas de oportunidade a estratégias inovadoras?

A minha experiência de dois anos e meio como coordenador do Projeto MAIA mostrou-me que foi possível desenvolver um projeto de formação bastante complexo, que tinha uma diversidade de dimensões, com uma participação muito ativa e de muita qualidade por parte de todos os intervenientes (e.g., formadores, formandos). Os dados referentes aos processos de formação estão detalhados nos relatórios que se produziram e ilustram bem que, nos tempos dramáticos das fases mais agudas da pandemia, fomos capazes de trabalhar tendo como pano de fundo uma cultura de inovação.

10. Se fosse Ministro da Educação como solucionaria o problema relacionado com a crescente e preocupante falta de professores?

Penso que todos concordaremos que estamos perante um problema complexo, que tem de ser enfrentado e que, de acordo com os dados existentes não é, ainda, uma situação dramática mas poderá vir a sê-lo dentro de poucos anos. Repare-se que em 2020/2021, no Continente, quase 22% dos docentes tinha 60 ou mais anos de idade o que significa que algumas dezenas de milhar de profissionais atingirão a idade da reforma dentro de seis ou sete anos. Perante estes dados e sendo plausível que, através da formação inicial, as instituições do ensino superior não terão capacidade para responder a esta necessidade em tempo útil, torna-se necessário encontrar formas de recrutamento que possam suprir as necessidades previstas. Julgo que é necessário que todos os intervenientes pensem de forma nova e inovadora para podermos recrutar novos profissionais assegurando que, de algum modo, as elevadas qualificações exigidas pela profissão possam ser garantidas. Neste sentido, será necessário compreender que não podemos pensar como se o mundo tivesse parado há 30 ou 40 anos atrás. Parece-me que é fundamental pensar-se e decidir-se a partir do que é o mundo hoje.

Acompanhei as medidas que foram sendo tomadas pelo Ministério da Educação no início deste ano letivo para lidar com a situação e pareceu-me que, no essencial, foram adequadas e permitiram suprir muitas das situações de escolas e agrupamentos onde ainda faltavam professores. E sei que estarão em curso negociações com os sindicatos de professores acerca de uma diversidade de medidas para enfrentar a situação que teremos dentro de alguns anos. Penso que há uma diversidade de questões que deverão estar a ser consideradas e que vão desde o sistema de recrutamento e a valorização e dignificação dos professores, até à questão das habilitações para a docência e aos processos de formação que deverão ser considerados para quem queira ingressar na profissão. Uma das mais sensíveis será a mudança no processo de recrutamento que talvez seja a mais complexa mas também a que há mais tempo necessita de ser revista. De facto, julgo que há anos que já não responde às necessidades e às realidades do sistema educativo. 

O CNE, no âmbito das suas atribuições, está a acompanhar atentamente este problema e não deixará de tomar as iniciativas que eventualmente se venham a revelar necessárias para contribuir para fundamentar e apoiar as decisões que se impõem.