PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

Desafios da construção de uma escola inclusiva: a importância de flexibilizar a prática pedagógica

Daniela Ferreira e Ariana Cosme
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

Um dos grandes princípios expressos nas recentes alterações propostas pelos responsáveis pela política educativa portuguesa, com evidentes e efetivos sucessos (Cosme, Ferreira, Fernandes, & Neves, 2018) , é o reconhecimento da importância da autonomia conferida a cada um dos agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas, e que lhes tem permitido responder às especificidades e exigências de cada contexto e tempo educativo. Um dos grandes desafios da Escola, e que a pandemia acentuou, é a efetiva inclusão de todas as crianças e jovens e por isso urge que cada contexto e cada docente possa diferenciar a sua prática pedagógica construindo ambientes educativos promotores de aprendizagens significativas e de sucesso, no sentido de minimizar e responder às barreiras que se colocam às aprendizagens (UNESCO, 2017).

A promulgação do despacho que dá corpo ao Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória foi uma das medidas decisivas da política educativa do XXI Governo Constitucional. Sendo um documento de referência para a organização da ação pedagógica, é ele que permite a “convergência e a articulação das decisões inerentes às várias dimensões do desenvolvimento curricular” (G. d. O. Martins et al., 2017, p. 8) e que por isso “assume uma natureza necessariamente abrangente, transversal e recursiva” (G. d. O. Martins et al., 2017, p. 8). É este documento que, afastando-se de um paradigma instrucionista, enciclopedista e curricularmente insular contribui para a reconfiguração do papel quer do aluno quer do professor.

Neste sentido urge que o professor se assuma como um profissional reflexivo (Alarcão, 1996; Schön, 1995; Zeichner, 1993), como um interlocutor qualificado (Cosme, 2009), como um construtor e gestor do currículo (Cosme, 2009; Niza, 2009; Roldão, 1999). Isto significa que cabe ao professor o trabalho de “recriação didática, em função do qual possam identificar os eventuais obstáculos que os alunos poderão enfrentar, os quais servirão de referência ao diálogo a estabelecer com estes alunos, bem como explorar outros caminhos ou a formular novos instrumentos e situações de apoio” (Trindade e Cosme, 2010, p. 69). Apetrechado de intenções curriculares e pedagógicas, é importante que cada professor possa pensar nos métodos, nas estratégias e tarefas que permitem dar resposta às barreiras à aprendizagem e considerar que “aquilo que leva um aluno a desejar aprender e a persistir nas aprendizagens escolares tem que ver quer com o modo como se criam e organizam os ambientes educativos e as atividades que aí se desenvolvem, quer com o modo como se estimula os alunos a participarem na organização de tais ambientes e atividades” (Cosme e Trindade, 2004, p. 13). Sendo estas condições essenciais, ainda que não sejam exclusivas, para um maior sucesso da escola pública, elas permitem ancorar práticas mais flexíveis do currículo e que implicam: (i) diferenciar os caminhos para a construção do conhecimento, assim como as tarefas a propor aos alunos, adaptando ou construindo os recursos didáticos; (ii) repensar a natureza da avaliação das aprendizagens, entendendo a pertinência de se diversificar ao nível dos procedimentos, das técnicas e dos instrumentos de avaliação.

Uma das outras medidas decisivas foi a promulgação dos Decretos-Lei n.º 54 e 55 de 2018, de 6 de julho, que juntos enquadram um outro entendimento da escola e dos processos de ensinar, de aprender e de avaliar. É a Autonomia e Flexibilidade Curricular que permite romper com a gestão curricular e estandardizada do currículo e que desafia a escolas a repensar a forma como se entende a relação educativa nas escolas. E pensar a relação educativa implica conseguir responder

“o que é educar; quais são as finalidades da Escola; o que é ser professor; o que é ser aluno; e qual o estatuto do património cultural que nas escolas constitui o referente em função do qual se constrói o património curricular que tanto baliza a organização e gestão do trabalho pedagógico que os professores terão que animar, como determina as expectativas sobre as aprendizagens que os alunos deverão realizar” (Trindade, 2009, pp. 60-61).

São as respostas a estas questões que suscitam a reflexão sobre a necessidade e a pertinência de um quadro político e educativo que permite às escolas a sua respetiva gestão curricular e pedagógica. Assim, ser professor implica entender a diferenciação pedagógica como parte integrante da sua ação, como forma de ser professor e em que perante o obstáculo à aprendizagem, se questiona “não só como aprende esta criança, mas como aprende esta criança face a este modo de ensinar, face a este contexto de aprendizagem” (Roldão, 2003, p. 57). Esta constatação propõe a aceitação da relação integrada e sistémica dos atos de ensinar, aprender e avaliar, pois clarifica os objetivos de aprendizagens, ao mesmo tempo que permite a sua monitorização ao mesmo que situa e orienta os alunos. O esquema que se segue sintetiza esta complementaridade dialógica do ato educativo.

Figura 1: Esquema dialógico dos atos de ensinar-aprender-avaliar Fonte: Ferreira (2020)

Em suma, acreditamos que é este entendimento que está na base da construção de uma escola inclusiva que acredita que todas as crianças são capazes de aprender e por isso se reconfigura nas formas como propõe o seu ensino; que organizar ambientes educativos promotores de aprendizagens culturalmente significativas; que entende o potencial de uma relação pedagógica assente em altas expectativas (Cortesão & Torres, 2018; Costa & Couvaneiro, 2019; Ferreira, 2020; Mariani & Mateus, 2007). Sabemos que este é um projeto exigente e precisa de tempo e investimentos, mas é importante que se reconheça que existem crianças, e por norma as que apresentam mais insucesso, que apesar de aparentarem estar em abandono; elas efetivamente nunca chegaram a entrar na escola (Charlot, 2002). Para reverter esta situação é importante flexibilizar as práticas pedagógicas, é importante compreender que a motivação dos alunos depende, em parte, do conhecimento dos objetivos que orientam as tarefas, do sentido e significado dessas mesmas tarefas, de um clima baseado na partilha e na confiança e de um sentimento de controlo sobre a sua própria aprendizagem (Trindade & Cosme, 2004).

Referências Bibliográficas

 Alarcão, I. (1996). Reflexão crítica sobre o pensamento de D. Schön e os programas de formação de professores. In Isabel Alarcão (Org.) (Ed.), Formação reflexiva de professores: Estratégias de supervisão (pp. 11-30). Porto: Porto Editora.

Charlot, B. (2002). Relação com a escola e o saber nos bairros populares. Perspectiva, 20, 17-34.

Cortesão, L., e Torres, M. A. (2018). Apesar de tudo... Que podemos nós professores, fazer? Porto: Edições Afrontamento.

Cosme, A. (2009). Ser professor: A acção docente como uma acção de interlocução qualificada. Porto: LivPsic.

Cosme, A., Ferreira, D., Fernandes, J. G., e Neves, L. (2018). Projeto de autonomia e flexibilidade curricular: Estudo avaliativo da experiência pedagógica desenvolvida em 2017/2018 ao abrigo do despacho Nº 5908 / 2017. Lisboa: Direção Geral de Educação.

Cosme, A., e Trindade, R. (2004). Áres de estudo acompanhado: O essencial sobre ensinar a aprender. Porto: ASA Editores.

Costa, J., e Couvaneiro, J. (2019). Conhecimentos vs Competências: Uma dicotonomia disparada na educação. Lisboa: Guerra e Paz.

Ferreira, D. (2020). A escola pública portuguesa: As crianças em acolhimento residencial e os caminhos da inclusão. (Doutoramento). Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Porto.

Mariani, V., e Mateus, N. (2007). Currículo por Competências: uma articulação entre dois olhares (1.º ed.). São Luís: Editora Integrado.

Niza, S. (2009). As associações pedagógicas e a construção do conhecimento profissional. In Jorge Bonito (Org.) (Ed.), Ensino de qualidade e formação de professores (pp. 381-392). Évora: Departamento de Pedagogia da Universidade de Évora.

Roldão, M. d. C. (1999). Gestão curricular: Fundamentos e Práticas. Lisboa: Ministério da Educação.

Roldão, M. d. C. (2003). Diferenciação Curricular Revisitada. Porto: Porto Editora.

Schön, D. A. (1995). The reflective practitioner: How professionals think in action. . New York:s: Basic Book.

Trindade, R., e Cosme, A. (2004). A construção de uma escola pública e democrática. In Rui Canário, Filomena Matos, & Rui Trindade (Eds.), Escola da Ponte: defender a escola pública (pp. 81-87). Porto: Profedições.

Trindade, R., e Cosme, A. (2010). Educar e aprender na escola: Questões, desafios e respostas pedagógicas. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão.

UNESCO. (2017). A guide for ensuring inclusion and equity in education.

Zeichner, K. M. (1993). A formação reflexive de professors: Ideias e práticas. . Lisboa: Educa-Professores.