PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

 

criar kallos*

João Matela
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já ninguém apura a caligrafia. eu próprio me atrapalho com o que escrevo. é triste perder a arte. é triste garatujar sem alma.

antigamente exibia-se uma boa letra com orgulho. não sei fazer mais mas faço isto. é a minha marca. um talento por explicar. esqueçam a ortografia. vejam os meus pês e os meus dês. admirem os rasgões do zê maiúsculo como um rasto do zorro. o érre com argola de brasão. este éfe que dá um bigode a qualquer tê grande.

não é apenas esmero nem herança. não senhor. foram centos de cópias e puxões de orelhas. cópias até à exaustão. ditados e depois redações. reparem que ainda tenho a língua de fora. um calo no dedo médio. tinta no calo e na bata. eu ensino quem quiser.

a senhora aí à frente está a rir? não acredita? venha cá. suba aqui sem vergonha. aplausos para esta senhora. como é o seu nome? muito bem. é também o da minha sogra. aquela santa. ora agarre aí a caneta do meu assistente. a caneta para senhora por favor. assim. não lhe morde minha senhora. venha cá. o marido pode esperar. não é tão à ponta. com suavidade. suavemente. ora não querem lá ver. isto não é o pau da bandeira minha senhora. agora vamos enfiar o aparo no tinteiro. tinta boa. tinta portuguesa. tinta do cartaxo. sem afogar a caneta. sem afogar minha senhora. isso. menos tinta. menos tinta que a vida está cara. bata na borda. na bordinha do meio. é para aliviar um pouco a carga. e agora devagar devagar para o papel. devagar. escreva o que quiser. ouve o metal raspar a fibra. o papel não se importa. faz impressão? mas é normal minha senhora. é normal. mas saia daí. depressa senão afoga o ponto final. cautela. cautela. nem tão fundo nem tão levezinho. a pressão certa sem vincar. e agora siga o pautado. isso. mudar de linha. mudar de vida como diz o outro. letra grande claro. letra grande como as que tenho no banco. a folha tem sede mas vá devagar. a pauta é o rego. o rego minha senhora. o regador é a caneta. tem de molhar outra vez. está a secar. está a secar. tem de molhar outra vez. oh minha senhora mas esta não é de tinta permanente. tem de molhar. vamos devagar. agora é pousar a caneta e deixar apurar. que está quase a levantar fervura. é descansar. é descansar. o aparo agradece. aplausos para a senhora. aplausos para o marido que já se quer ir embora. há mais alguém para agarrar na caneta?

talvez por compaixão João da ega acabou por elogiar a caligrafia de dâmaso salcede. o pobre dâmaso corou. caramba. era o seu último refúgio de dignidade enquanto escrevia a infame carta de humilhação.

corria Julho de 1969 e dois homens chegavam pela primeira vez à lua. levavam esferográficas especiais para a microgravidade. à prova de frio intenso e de calor de ananases. escreviam mesmo de cabeça para baixo embora no espaço não haja nem cima nem baixo. reza a lenda que os russos preferiram o lápis à caneta mas não é verdade. nesse mês enfrentei cá em baixo o não menos assustador exame da 4ª classe.  apresentei-me vestido e calçado como para um casamento. e estreei com orgulho a única e extraordinária ferramenta à altura do acontecimento: a caneta-de-tinta-permanente. passei com distinção e zero erros no ditado. acho que guardo algures o diploma da proeza. mas não a caneta. em breve a trocaria pela esferográfica. o resto é história. eu e o neil armstrong demos cabo da letra para sempre. felizmente já ninguém liga à caligrafia.

 * Caligrafia deriva do grego “Kallos” (“Beleza”) e “Graphein” (“escrever”)