PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

 

A constituição de turmas –  no final do arco-íris está um pote de ouro

Maria Luísa Moreira
CEFOPNA

Acredito de facto, cum saber de experiência feito construído ao longo de trinta e dois anos de profissão docente, que o sucesso educativo se constrói na sala de aula, através de dinâmicas ativas e diversificadas. Nunca tive muitas dúvidas em defender que, para que o sucesso aconteça, é necessário trabalhar para os alunos, e com cada aluno, através de processos de construção de aprendizagem, mas, e também, recorrendo a dinâmicas capazes de envolver ativamente o sujeito de aprendizagem.

A sala de aula é, ou deve ser, defendo, um espaço de ação-reflexão, de questionamento de múltiplos fazeres. Defendo com convicção, que a vocação natural da escola é o sucesso e que, contrariamente ao que, vezes demais, acontece, é ao professor, e não ao aluno, que cabe a maior quota de responsabilidade quando o insucesso acontece. Vejo a sala de aula como um espaço de variedade, de efetiva construção de múltiplos possíveis, de tentativas e de muitos erros, de vitórias, de gargalhadas e, às vezes, de algumas lágrimas partilhadas. E partilha é mesmo a palavra chave: - Professor e cada aluno partilham tempo (e como o Tempo se tece de tempos valiosos!), experimentam e procuram soluções. A escola, a escola que eu quero e pela qual trabalho, é um espaço plural, feito de diversidade, com lugar ao sol para cada um dos alunos, numa heterogeneidade que só pode mesmo ter repercussões positivas na vida de toda a comunidade.

Alguém disse um dia, oiço agora a voz que não identifico na minha memória de muitas leituras, que “quanto mais velho estou (era uma personagem masculina) mais compreensão tenho…”. Acontece-me o mesmo. Cada vez mais compreendo os obstáculos e, cada vez mais, me apetece combatê-los, destrui-los, transformá-los em promotores de sucesso.

Sem dúvida, há por parte de alguns professores uma tendência para normalizar, combatendo, ou ignorando, a diversidade, a heterogeneidade, que existe dentro dessa já referida unidade, tão cheia de diferenças, que é a turma.

É, pois, sobre a turma, sobre igualdade de oportunidades, constituição e organização de grupos, a gestão da heterogeneidade que ouso tecer algumas considerações.

A escola como hoje a conhecemos, na organização top down que a caracteriza, surgiu no século XIX e, estranhamente ou não, embora a sociedade de hoje nada tenha de semelhante às sociedades de então, no sentido lato da sua organização pouco mudou: - O sistema continua a organizar-se com tempos e conteúdos de aprendizagem estanque, à hora (às vezes, à la minute), em grupos constituídos de acordo com o ano de nascimento dos alunos. Supõe assim, este modelo organizativo, que a data de nascimento define tipos de aprendizagem. Se, com certeza, pode haver identidades e semelhanças atribuídas à idade, sendo mesmo possível identificar alguns comportamentos frequentes em determinado nível etário, não deixa de ser verdade, igualmente, que há indivíduos diferentes do “modelo”, que cada indivíduo tem o seu ritmo, os seus gostos, até, diria, a sua estrutura de pensamento.

Em Portugal a escola de massas, a dita escola para todos, torna-se uma realidade após 1974. Os cravos perfumam de possíveis a sociedade e a escola, até aí muito dirigida a elites, abre as portas e acolhe todos. Contudo, esta escola de igualdade no acesso, torna-se de diferenças no sucesso.

A Lei de Bases do Sistema Educativo afirma garantir aos cidadãos “uma igualdade de oportunidades face à educação”. Mas  a igualdade de acesso que a escola de massas tenta oferecer não é, geralmente, acompanhada de uma igualdade de sucesso dos alunos que a frequentam.

Se, inicialmente, se considerava a família, e o meio social no qual a criança se insere, um preditor de insucesso, estudos recentes, a par dos últimos resultados obtidos pelo PISA, questionam esta teoria. (Se esta teoria fosse, por si só, explicativa das diferenças e do insucesso, diríamos que a escola seria uma favorecedora de estratificação social, uma experiência de construção de sociedades cheias de socalcos, de níveis e desníveis, num determinismo social terrível e, até, violento.)

Verifica-se, contudo, que a escola se constrói, e funciona, normalmente, para o “aluno-tipo”, o tal “cliente ideal”, sem olhar a todos (e são tantos!) os que têm comportamentos diferentes. Olhemos, então, a atualidade: - O mundo parece ter encolhido, as distâncias estreitaram-se e os cidadãos passaram a viver num mundo global que faz com que, cada vez mais, na mesma sala de aula possam estar alunos de etnia cigana, cabo verdianos, moldavos, chineses, etc. Não são uns melhores do que os outros, mas são todos singulares e diferentes, exigindo da escola, dos professores, diferentes formas de trabalhar e impondo a necessidade de novas dinâmicas de aprendizagem.

Muitos professores, ainda que nem sempre se apercebam, não são capazes de olhar esta diversa singularidade, sofrendo do que Cortesão designa como “daltonismo cultural”. E perdem muito… Porque, como reza a lenda, no final do arco-íris está um pote de ouro! E o pote de ouro é o potencial que muitas diferenças trazem para a construção de uma sociedade muito mais harmoniosa, humana e culturalmente rica.

A heterogeneidade constitui, não tenho  qualquer dúvida, um desafio, e uma dificuldade, para o professor. Nós,  os professores fomos formatos, fomos treinados, para trabalhar com o modelo dito “normal”, para promover a normalização e não para permitir, ou enriquecer, a normalidade. É a sociedade pronto-a-vestir que vai à escola, com a medida certa e o corte ajustado à moda imposta.

Esta atitude dos professores, ainda que justificada por um processo histórico, tem vindo – e continua – a ser um obstáculo ao sucesso individual e à evolução da sociedade. O professor que trabalha para o aluno igual, para o tal aluno médio inexistente, não conhece os seus alunos, não facilita o estímulo intelectual e não promove atitudes de colaboração, de partilha e de solidariedade. É a reprodução de um modelo Taylorista, em detrimento do construtivismo.

Pelo contrário, o professor capaz de olhar o arco-íris aceita a diversidade, adapta as estratégias ao aluno e opta por estratégias de ensino e aprendizagem em função da especificidade de cada aluno.

O binómio é claro: - Se se trabalha para o aluno médio, inexistente, optando por estratégias iguais para pessoas diferentes, promove-se o insucesso; se se trabalha para a diversidade, para os diferentes tipos de aluno presentes na mesma turma, promove-se o sucesso.

A mudança de atitude, o alargamento do espectro colorido que preenche a escola de hoje, implica, necessariamente, um olhar sobre o processo de constituição de turmas.

Desde que iniciei o exercício da minha profissão, nos idos anos 80, que percebi que a constituição das turmas não é um processo liso de interferências económicas e sociais. No início, eram-me invariavelmente atribuídas as turmas designadas a partir da letra “F”. Eram, sempre, turmas catalogadas como difíceis, incluindo alunos com retenções acumuladas e com interesses muito distantes da realidade da Escola. As primeiras letras, gradativamente, eram as que identificavam as turmas de elite, as que incluíam os filhos dos doutores e engenheiros, como então se dizia. Não concordando com esta forma de organização das turmas, lembro-me das justificações dadas: - É mais fácil trabalhar com grupos homogéneos; não podemos prejudicar os que querem aprender; há alunos que estão já perdidos, não adianta perder muito tempo com eles… O absurdo resistiu, diria que quase incólume, ao passar dos anos e das teorias de aprendizagem em vigor. Hoje, em pleno século XXI, ainda é clara a existência de turmas que segregam, não incluem; ainda as turmas A e B são, quase sempre, as “melhores”.

Para constituir turmas obedece-se a critérios diversos como as prioridades dos pais/encarregados de educação que primeiro apresentam os seus pedidos nas escola; a idade dos alunos (juntando os que têm aproximadamente a mesma idade); a zona de origem atendendo a relações de vizinhança ou amizade; do grupo de onde vêm de outras escolas; do tipo de percurso académico; dos grupos sociais e étnicos; das opções que fazem relativamente à frequência de disciplinas de opção.

Em conversa com docentes, verifica-se facilmente que não são tidos em conta processos de aprendizagem, vantagens de conjugar diferenças ou análise dos efeitos uniformizadores e seletivos que os critérios apresentados possam ter. Há também que considerar o papel dos pais/encarregados de educação neste processo….( E eu lembro-me do drama que foi a inserção na Escola Básica de Fronteira de duas crianças hemofílicas. Esta situação que acompanhei de muito perto, revelou bem a força que os pais podem ter em todo o processo educativo…) Muitas vezes, sobretudo em escolas do interior, surgem verdadeiros movimentos populares contra a inserção de crianças de diferentes etnias no grupo turma. Estranhamento, ou talvez consequência do imediatismo voraz em que vivemos, alguns  pais não pensam a longo prazo, não pensam que, cada vez mais, a sociedade é policromática e os alunos só ganharão com a experiência real de contacto com o mundo que irão integrar (que já integram).

Analisados os critérios referidos, facilmente compreendemos como os mesmos são desajustados. O facto de, por exemplo, de obedecer à zona de origem pode levar à constituição (ou manutenção) de guetos. Imaginemos, por exemplo, o critério da zona de origem: as turmas não irão promover o Valor solidariedade, amizade e respeito pelo outro.

Em síntese, há estudos que provam o que muitos professores empiricamente conhecem: - Os critérios que, tradicionalmente, presidem à constituição das turmas, não servem uma aprendizagem de sucesso para todos, não respondem à grande necessidade social que é a educação para a igualdade de oportunidades.

Curiosamente, no ensino secundário esta segregação de alunos acentua-se não só na constituição das turmas como, também, na orientação escolar dos alunos. Os alunos oriundos de meios socioeconómicos mais desfavorecidos tendem a ser encaminhados para o ensino profissional e, deste modo, não só se separa de acordo com rendimentos como, o que me parece igualmente grave, se desvaloriza a dimensão profissional da oferta escolar.

As orientações legais em vigor sugerem que, por exemplo, se insiram alunos com retenções em turmas sem retenções, que se equilibre o número de alunos do sexo masculino e feminino e que não se criem grupos de crianças com intervalos de idades de um ano apenas. Contudo, e mesmo observando as recomendações feitas, e que estão em vigor, não posso  ignorar que o processo de constituição das turmas influencia, direta e inegavelmente, o sucesso dos alunos e a dinâmica das aprendizagens.

Parece-me claro que a heterogeneidade é um facto de sucesso educativo. No entanto, há que pensar (e repensar) o que de facto se quer da educação; o que se quer da Escola. (Obviamente, há questões que se prendem com políticas educativas que influenciam (e às vezes determinam) a organização da Escola). Se se defende que a função primeira, e quase única, é a aquisição de conteúdos, talvez, de facto, a homogeneidade das turmas não seja um obstáculo. Se, como eu defendo, se entende que à Escola compete educar para uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais solidária, mais aberta, mais humana, então a heterogeneidade é o caminho.

Creio, contudo, que é a Educação da Pessoa, na sua pluralidade una, que deve ser exigida à Escola de hoje. Defendo, sem muitas hesitações, a constituição de turmas heterógenas. Ou, de forma mais ousada, mas mais verdadeira, defendo que seja possível fazer a gestão, por anos, de diferentes grupos, em diferentes espaços e tempos. Não acredito que seja apenas, que seja fator determinante para o sucesso, unicamente a constituição das turmas. Não! O processo de aprendizagem é complexo, constitui-se com um tecer de múltiplas variantes e a constituição das turmas, sem dúvida importante, é apenas uma delas.

Defendo uma Escola onde aos professores seja possível fazer a gestão de grupos de aprendentes (privilegio este quase neologismo, por valorizar a dimensão ativa do sufixo ente), em diferentes espaços.

O que proponho, é a possibilidade de os professores se organizarem por conselho de anos, trabalhando de forma efetivamente colaborativa, podendo fazer e desfazer grupos de trabalho de acordo com as características das aprendizagens e dos projetos a desenvolver.

Defendo uma Escola capaz de desenvolver a dimensão cognitiva, sem dúvida, mas também a dimensão sócio afetiva, a solidariedade, o espírito de entreajuda, a consciência de que ninguém sabe tudo, a consciência de que é possível vencer os impossíveis…

A colaboração entre professores, a articulação dos planos de trabalho, a adoção de estratégias ativas e colaborativas são, creio, o caminho para a construção de um verdadeiro arco íris na Escola portuguesa.  O importante é, pois, desenvolver estratégias que devolvam aos alunos a possibilidade de estarem ativos, de construírem o seu próprio conhecimento, de agirem de facto sobre o real desenvolvimento das suas competências.

A mudança do paradigma educativo tem de implicar, necessariamente, o tipo e método de trabalho desenvolvido pelos alunos.  O trabalho desenvolvido através de pequenos projetos em que a iniciativa é muito dada aos alunos, os pequenos trabalhos de pesquisa na aula ou na escola, o recurso a simples consultas bibliográficas feitas no grupo (…) são exemplos sobre a forma de efetivamente promover o sucesso. Mas podía sugerir outras: - a inovação, a quebra da rotina, a mudança da organização do espaço aula, a diversidade de recursos, etc. Todas as metodologias que coloquem o aluno em atividade, permitem ao professor conhecer melhor cada eu.  Quanto mais forem as metodologias que privilegiem a interdisciplinaridade, mais real será o trabalho colaborativo entre os docentes e, consequentemente, maior será o sucesso dos alunos.

Sem dúvida, independentemente do critério escolhido para a constituição das turmas, os efeitos poderão ser o da constituição de turmas socio culturalmente homogéneas; a heterogeneidade dos alunos é uma riqueza que importa aprender a rentabilizar.

É necessário, diria mesmo que imprescindível, que o professor conheça a pessoa que mora em cada aluno, muito para além do número que o mesmo tem na turma, ou do nível de avaliação eu obtém.

A escola precisa de se reorganizar, não só na constituição das turmas mas também, sobretudo (?), na gestão das aprendizagens, na organização dos tempos, na forma de avaliar.

À escola cabe, acredito, contribuir para minimizar as injustiças sociais, facilitar o desenvolvimento harmonioso e plural da criança ou do jovem. Ser professor é muito mais do que ensinar conteúdos de uma qualquer ciência, de um qualquer programa!

Maria Luísa Moreira

 

Referências Bibliográficas:

Alarcão, I (1991), A Didáctica curricular: fantasmas, sonhos, realidades, in I. Martins , et al (eds), Actas do 2º. Encontro Nacional de Didácticas e Metodologias de Ensino. Aveiro. Universidade de Aveiro.

Abreu, M.V. (1979), O Efeito de Pigmalião: Considerações sobre as Atitudes do Educador, in Questões de Psicologia e Pedagogia , pp.193-210. Lisboa. Livros Horizontes.

Azevedo, Joaquim (Ou/Dez,1996), A Reforma do ensino secundário vista por Joaquim de Azevedo, in Noesis, 40.

Barros, J.H. (1990), Importância das Expectativas dos Professores para a realização escolar, in A Componente de Psicologia na Formação de Professores, pp.551-561, in, Actas de I Seminário. Évora.

 Luísa Cortesão O arco-íris na sala de aula?: processos de organização deturmas: reflexões críticas