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Reflexões

Maria de Jesus Castro
 

A Caixa de Pandora foi a primeira peça que o “Teatro da S. Lourenço” levou à cena. Pensar e falar dessa Escola que vivi é bem capaz de a abrir e eu não sei se o quero fazer, sinceramente. Talvez por medo, sim. Mais do que dos “males” que dela saiam, medo sobretudo de dar comigo a falar sozinha, sem interlocutor que me entenda, por falta de referente comum (uma das condições para que a comunicação se estabeleça, lá aprendi na Linguística e, imaginem, tive a veleidade de tentar ensinar quando me fizeram dar Português nos tempos da Gramática Generativa, das árvores e dos sintagmas. Mas desta da comunicação eu gostei. Passei a perceber todos os ruídos que a impedem.)

Se calhar, contar a história da nossa Caixa de Pandora bastaria para dizer o que foi essa escola que eu vivi. (Gonçalo, nunca esquecerei que a ti o devemos). É que ela foi o milagre da criatividade, da entrega, da alegria e do prazer que, no caldo de troca e convicção que tudo envolvia, faziam a festa que a escola então era para nós. Sem tempo, sem lugar, sem certezas feitas – os fins-de-semana no jardim do Dr. Pacheco, cada um construindo o papel das personagens de uma história de todos os tempos, como se, com os seus 14, 15 anos,  fossem eles a descobri-los!

Sim. Ingenuidade. Muita. Abençoada! Sem ela o que teríamos deixado de fazer.

Não tenho qualquer dúvida de que as grandes aprendizagens que enformam o que considero ser a Escola foram o Grupo de Teatro (disse-o à exaustão nos textos que escrevi nos programas das peças) e as Semanas Culturais, sem as quais ele não teria existido.

O que disse atrás sobre a “Pandora” pode soar a ligeiro, lírico até. Pouco me importa. Sabe-o quem o viu e o viveu – as evidências vividas – que foi a génese de vários anos de verdadeiras Áreas de Projecto e Interdisciplinaridade, sem que alguém isso lhes chamasse.  De muito trabalho, estudo, investigação, horas na escola nunca contadas, 6ªs à noite (!!!), férias de Páscoa inteiras, sábados e domingos, rigidez de horários por  vezes intolerante, rigor absoluto. Profissional. (Como às vezes me doía, Carlos!) Mas de prazer. De descoberta, de gosto pelo conhecimento. De qualidade. De crescimento. De amizade.

Viveram-no a “Mouzinho” e a “Cristóvão” (não me lembro agora se chegaram a vir da “José Régio”) nos seus alunos que se sentiam tão nossos como os que o eram. Os professores: o Gonçalo foi-se embora e ficou sempre. A Joaquina Caeiro, igual. O Carlos, meu Deus, o Carlos do Rosário! (De que escola?) Depois a Joana Albuquerque – de nenhuma! Não digam que não foram tempos de milagre!   

Isto no Teatro. As Semanas Culturais foram mais anárquicas. Mas que bom o escândalo de não haver aulas! Queta, se por acaso leres estas linhas, diz lá se algum dia esquecerás o que com “eles” fizemos “À Volta da Carta”? Loucuras do Capote, que atirava a bola e fugia, porque tinha a certeza de que alguém meteria o golo! (Acreditávamos – nada era medido então! Só dávamos contas ao que nos propúnhamos fazer, porque era o certo, o bom para “eles”. Não era então preciso ser melhor do que ninguém). O ano dos Descobrimentos, em que vimos o espectáculo todo montado pela primeira vez no dia da apresentação! Mas que não pensem que alguma vez saiu “jeitosinho”. Bom gosto e qualidade, para que conste.

Festa. Era mesmo. Lembro o tempo em que, a pretexto de nada, aparecia um bolo de ananás na sala dos professores só para lá irmos comer uma fatia. E estarmos juntos. Lembro as cinco dúzias de ovos que trouxe para casa, para no outro dia levar feitos em ovos moles. Os quilos de fruta que cortávamos em panelas enormes para a salada de fruta dos jantares e almoços que sempre alguém inventava (Sra. D. Lúcia!). Os lombos de porco que um dia me pediram para lardear e me obrigaram a derrapar no piso devidamente engordurado da cozinha. O centenário da escola. Alucinava ao ouvir encomendar quantidades para mim impensáveis, mas imprescindíveis para tranquilizar o zelo anfitrião do Dr. Pacheco.

Humor. O Mouta a trocar os livros de ponto nos cacifos e a descer candidamente ao seu cantinho. Imaginam o que se seguiu?

O Assertivo (jornal)! Até hoje não tenho a certeza de quem foram os autores; só desconfio, pela inteligência e acutilância da crítica. Mal-estar e desconforto, com certeza. Era possível, então, abalar os bons costumes.

Apetecia sempre ir à escola. Passar lá, mesmo sem ter trabalho. Não digo todos, mas muitos. (“Menina, os outros não fazem falta”, resposta do Engº. Malcata à minha queixa de serem sempre os mesmos a fazer tudo. Parcimónia inteligente das palavras!)

                   

Bom, cuidado. Saudosismo nostálgico, não. “No meu tempo é que era bom”. Era o que faltava! (isso é de vellhos!!!)

E não seria rigoroso nem honesto dizer que tudo foi bom ou esteve bem.

 

Entrei nos anos de mudança, da mudança. Da massificação do ensino e da entrada de muitos professores sem habilitação nem formação pedagógica. Houve erros, incompetência, exageros dum tempo de excessos, que deixaram lastro até hoje. Memorizar saiu de moda. Comunicar passou a ser lei (e bem), sem importar a correcção da língua. Erros ortográficos, que mal? Aprender = prazer. Tudo jogo, tudo lúdico. Importámos do ‘marketing’ tudo quanto era técnica para os motivar, só e sempre pelo interesse (pois claro!). Deixámos de ser a “Escola Industrial”. Veio o ensino obrigatório, passámos a tê-los todos. Os que queriam  e os que não queriam aprender. Os que desde a banheira de bébé follheavam livrinhos de plástico e os que não tinham nem as estantes, nem os livros. (Boa, porque real, igual à vida, esta mistura. Não é isto a Escola Pública? Para isso somos professores. Mas só percebe quem os teve na frente, em levas de 28 ou 30, nos bons tempos de 50 em 50 minutos). Passámos, por isso, a ter de lhes “comprar” o interesse, a motivação. Esforço e aridez desapareceram do ‘processo de aprendizagem’. E agora … tudo “é uma seca, professora!” “Jogar xadrez, professora? Bué da tempo!”

Passei (com todo o ardor, sabem os que se lembram) pelos anos das teorias de avaliação (dos alunos), das taxonomias, do Bloom – que discussões, mas que convicção e que trabalho bom de descobertas! Sempre a remar contra alguma maré! Que Pedagógicos (Conselhos)! Reuníamos, preparávamos lições, estratégias, planos. Experimentávamos. Sem a sistematização devida, de certeza. Errado. Os que reuníamos, eu sei. Não devia. É importante medir. Fazemos todos melhor ou pelo menos com mais cuidado se tivermos que dar contas. É claro que todos temos de ser avaliados. Nunca tive paciência para o óbvio. Errado não o termos sido sempre. Chega dessa conversa que já não aguento.

É-me difícil a objectividade ao olhar para trás num tempo em que muito pouco do que o (meu) olhar alcança se identifica com o que fez a minha vida de 35 anos de escola. Por isso, quando me é pedido para, por escrito, falar dela, ponho apenas em palavras aquilo em que penso quase todos os dias e que digo a muitos amigos muitas vezes: como é que alguém que tanto gostou da escola, dos alunos, de ensinar, e que para tal canalizou o melhor de si, se sente tão bem cá fora?

Acho que é alívio de já me não sentir responsável pelo crescimento, nem pelo ajudar a ‘fazer pessoa’ destes 15,16 anos que por mim continuam a passar com as marcas dos tempos deles, ameaçadores, crêem, aterrados, penso. Em que lugar estão eles na lista das prioridades dos planos do ensino, das escolas, dos professores? Não poderei generalizar, mas, sem o tal saudosismo do dantes é que era bom, atrevo-me a afirmar que houve um tempo em que para uma grande maioria de professores eles eram a prioridade.  Afirmo com a autoridade de o ter vivido que a escola física em que sempre  trabalhei foi deles e eles assim o sentiram e viveram na concretização de muitos projectos que realizaram em liberdade responsável. Penso no que nos ‘obrigavam’ a fazer. Penso na Rádio, na Feira das Velharias, nas Exposições de Artes, nas muitas actividades das ditas Semanas em que a escola era invadida pela cidade. Não enumero, para não cometer lapsos. (Talvez fosse uma moda dos tempos, mas lembro com muito agrado as Semanas da Educação da Mouzinho, a que muitos íamos e cuja qualidade sinceramente admirávamos.)

Fixei para sempre um comentário de um colega numa altura em que partilhava o trabalho do directivo: aqui só não faz coisas quem não quer. Ninguém nos obriga, corre-se o risco de nada fazer, mas tudo nos é permitido experimentar. Gostei e achei que era verdade. A liberdade é arriscada.

Vivíamos a vertigem do imprevisto a que diariamente os alunos nos obrigavam. Era uma frescura a que faltava alguma organização planificada. Terreno sempre movediço, mas fecundo. Desafio à criatividade da solução de problemas constantes e inimagináveis.

 

Mas quase tudo mudou. Sempre assim foi. Assim tem de ser e é bom.

Mudaram os comportamentos, as classes emergiram. Ser professor … dar aulas … Respeito só ‘porque sim’? Professor = autoridade? Nessa ingenuidade nunca embarquei. Respeito e autoridade conquistam-se nessa tarimba dos 50, agora 90 minutos, todos os dias, sem descanso – coisa que os Ministérios desconhecem.

Vade retro platitudes de que estou cheia, mas … vieram as tecnologias, os PCs, a Net. Os afins. Como poderíamos continuar a querer ser fonte de conhecimento? A esperar a veneração pelo nosso saber?

Mas vieram também o numerus clausus, o endeusamento da média, o acesso de todos à Faculdade. As mil actividades, as explicações. A pressão da ansiedade dos pais nuns ombros que fingem não lhe sentir o peso, mas duma fragilidade incapaz de enfrentar a mais pequena frustração, porque ao mesmo tempo tudo lhes é dado, sem o esforço ou a luta da conquista. A competitividade que anulou o sentir do grupo (grupo mesmo, que os trabalhos em/de grupo  são contas de outro  rosário). O pragmatismo constante: tudo tem de ser para alguma coisa, acima de tudo para a nota.

Ah, e as aulas de substituição. (Falo só do secundário, porque então teria de falar dos trabalhos de casa paranóicos, do estudo que não sei o que acompanha, perdoem-me a ignorância, do cansaço e náusea da escola que vejo nos olhos dos mais pequenos). Acabou. Não podem gostar da escola. Não podem já ver adultos. Não lhes dão espaço para ser eles, para simplesmente não fazer nada, para ‘curtir’ o feriado, para transgredir.

Os castigos, os papéis, as participações. Terreno perigoso este, eu sei. Fui sempre péssima nisso. Alguns dissabores, memória boa tenho, mas não vou por aí. Apesar disso, ninguém me convence de que a única maneira de resolver um problema não é ali, no tal quadradinho da sala de aula, no frente a frente de pessoas que, connosco, têm de aprender a errar e a corrigir, a pedir desculpa e a aceitar o nosso pedido de desculpa. Num exercício de paciência infinita, a tal que os pais têm de ter todos os dias para convencer que dentes e orelhas são mesmo para lavar. Paciência nunca tive, isso não, para as assertividades do “eu não estou aqui para aturar faltas de educação”. Escola pública, para todos. Não estamos no S. João de Brito. (É que é da minha escola que me pediram para falar). E com o Mariano aprendi o ‘Ovo de Colombo’: “Quando eles não sabem, ensina-se.” TUDO. Sem espanto.

Nunca me importei muito com o que dissessem de mim e agora então, venha lá o que vier. Eu penso quase todos os dias que não sei como é que eles não rebentam mesmo, com eles e com tudo à volta. Acho que se lhes mata a criatividade – senti-o diariamente nos últimos anos, e olhem que ainda nem há dois saí, sei do que falo. Só se entende o óbvio, e só o óbvio se espera e se lhes ensina. Isso aterra-me. É o terreno fértil para a manipulação total. Nada se questiona – penso sobretudo nos adultos, nos professores, sim – tem  de se seguir e cumprir directrizes. E esse modelo infantilizante e paternalista passa. Aniquila o pensamento, mata-o. (N.B. Qualquer generalização é injusta, arrogante e foge à verdade. Conheço muitas excepções e tenho a certeza das muitas que não conheço. Solidarizo-me com o calvário do seu dia a dia. Não são palavras bonitas. São sentidas.)

Ao longo dos últimos anos pensei muito no que eu sabia ou julgava saber fazer; no eco que disso ia tendo no dia a dia (na aula, o único forum que de há muito me interessava – deixei de acreditar em projectos que mudam o todo. Ali está a chave, a mão na massa, onde não pode haver punhos de renda); no que sentia já não ter impacto, não obstante a minha certeza da sua pertinência. Na necessidade urgente de mudarmos quase tudo, ou seja, de nos ajustarmos à realidade de que a Escola já não é mais do que a oportunidade de aprender a usar a informação que do mundo jorra por todo o lado e a cada momento, na troca humana que o seu contexto propicia. Dar as ferramentas, diz-se agora. Sobretudo desafiar o pensamento inteligente. O como de hoje eu já não sei.

Que se quer da Escola? Que ensine. Claro. O quê?

Olho para trás. Reformas. Leis. Sempre achei que os sistemas pouco interessam. A filosofia subjacente é sempre certa. Os vícios estão todos lá. O que sempre e só me interessou foi a única e última razão de eu ali estar: pessoas a crescer, a aprender, antes de mais, a ser. E nunca esqueci a responsabilidade terrível de intervir nesse processo e deixar marcas para sempre.

Penso hoje que materializei o agora tão criticado ‘ensino centrado no aluno’. Não tenho dúvidas. Reflicto sobre essas críticas e encontro-lhes pertinência. E assusto-me, porque não tenho a certeza do que de facto lhes ensinei ou eles aprenderam comigo. Não suporto a imodéstia hipócrita: coisas correram mal, houve desencontros e faltas de empatia, mas do todo eu guardo a maior gratificação para a vida inteira. Fico muitas vezes sem palavras quando recebo ecos da importância que me dizem ter tido na vida deles – obrigo-me, então, a pensar nos que nunca me dirão do mal que lhes fiz. Tomara que mo dissessem! Mas a pergunta a que nunca consigo responder é: importante pelo Inglês que lhes ensinei? (Estou a pensar numa aluna minha que, passado algum tempo de o ter sido, terá dito: “Eu de viajar não gosto, mas o país que gostava mesmo de conhecer era Londres!” – que vos parece a minha qualidade de professora?) É muito assustador, garanto-vos, porque duvido que me lembrem pelo Inglês. “Mixed feelings”. Não sei se gosto.

 

Sempre olhei de frente a realidade. Alimento a esperança como prioridade de vida. Tenho a certeza de que tudo se refaz em formas novas e sinto a maior empatia com todos os que, fazendo bem ou mal, estão “de turno” neste tempo. Acredito incondicionalmente na força oculta da criação. Está aí um mundo novo. Por que havia de ser fácil?

Mas vejo com muita clareza a sabedoria da velha verdade bíblica de que para tudo há um tempo.

Por isso me vim embora.