PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

Quando For Grande Quero Ser Polícia

Miguel Castro
Instituto Politécnico de Portalegre

RESUMO

Neste trabalho, refletimos sobre as expetativas reveladas por crianças de 7 Jardins de Infância de Portalegre (Portugal) relativamente à profissão de Polícia. Sendo uma profissão tradicionalmente ligada ao masculino, abordaremos este tema numa perspetiva de igualdade de género e cidadania.

 Cruzamos dados obtidos a partir da questão posta às crianças – quem quer ser polícia? – com números da frequência de mulheres e homens no Mestrado do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna e ainda com os dados do Comando Distrital de Portalegre, Portugal, relativamente ao peso dos sexos neste contingente.

Esta profissão é associada maioritariamente ao masculino; é também comumente aceite que as modificações culturais caminham de forma mais lenta que as visões e abordagens teóricas a fenómenos sociais, que embora significantes, não representam, a maioria do tecido social. Esta realidade é ainda mais verdadeira em locais afastados dos centros de inovação e criatividade.

A realidade da igualdade e paridade entre sexos ainda está longe de ser alcançada. Vai-se notando uma maior abertura, quer dos envolvimentos e pressões sociais, quer das opções individuais. Porém, o efeito de género ainda é evidente. O facto de as mulheres poderem ter acesso a profissões tradicionalmente masculinas, como é o caso de polícia, ainda implica que sejam remetidas para funções burocráticas, e não para aspetos ligados ao perigo inerente à atividade.

 Palavras-chave: Polícia; Igualdade de Género, pré-escolar; Masculino/feminino.

 I - OS GÉNEROS DO SEXO

Sexo e género têm vindo, nos últimos anos, a adquirir significantes e significados diferentes quando tratamos de igualdade entre homens e mulheres. A justificação para este caminho encontra-se tanto nas conclusões da ciência, como nas evidências sociais que a visão pós-moderna veio introduzindo no tecido social, transformando lentamente a visão cultural do que é ser homem e/ou ser mulher.

A questão da diferença entre sexos é biologicamente visível e necessária. Para assegurar a sua sobrevivência cada espécie terá que cumprir três requisitos essenciais e contar que as condições ecológicas não sofram alterações mais rápidas do que as que as mutações naturais consigam acompanhar de modo a permitir a adaptação da espécie às transformações no seu habitat. As funções básicas para a sobrevivência são:

“1- A possibilidade de se manterem vivos, pela nutrição, a assimilação e as reações energéticas da respiração e de fermentação;

2- A possibilidade de propagarem a vida, graças à reprodução;

3 – A possibilidade de se auto regularem pela coordenação, a sincronização, a regulação e o controlo de todo o conjunto de reações.

Para evitar qualquer equívoco e visto que estas funções respeitam tanto a uma bactéria como ao homem, traduzamo-las em termos de generalização:

1- AUTO-CONSERVAÇÃO

2- AUTO-REPRODUÇÃO

3- AUTO-REGULAÇÃO”[1]

Esta sistematização ajuda a entender as diferenças entre sexos, mas também diferenças, estereotipadas, entre géneros.

A palavra estereótipo é vulgarmente usada com um sentido pejorativo; no entanto, é uma interpretação abusiva e pouco precisa. No dicionário Prinberam da Língua Portuguesa, podemos encontrar:

“- Ideia, conceito ou modelo que se estabelece como padrão.

- Ideia ou conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério ou imparcial. Preconceito.

- Coisa que não é original e se limita a seguir modelos conhecidos. Lugar-Comum.”[2]

A palavra do ponto de vista biológico, representa um padrão geral, um modelo. Os modelos são orientações, mas não representam a realidade; ajudam-nos a interpretá-la e a compreendê-la, não a vê-la sem variância. As diferenças entre sexos existem, são normais, e desejáveis. A função sexual não se limita à reprodução; ela é igualmente simbólica e permite estabelecer hierarquias dentro de clãs ou outros grupos. A sua relação com o prazer está intimamente ligada à necessidade de assegurar a descendência, e indiretamente, a espécie. Se não fosse recompensadora sensorialmente e no imediato, a apetência para o ato sexual diminuiria e poria em risco os contingentes da espécie, levaria à consanguinidade e, no limite, à extinção.

Comportamentos homossexuais (masculinos ou femininos) verificam-se em várias espécies. São utilizados como atos de prazer, diversão, organização social, ou, como no caso da espécie humana, opções relacionados com o domínio emocional e amoroso.

O condicionamento biológico tem repercussões na organização social e cultural e é uma das primeiras razões para o nascimento das diferenças de género.

O sexo feminino é responsável pela maternidade. Por muitos desvios ao padrão que conheçamos (os cavalos-marinhos ou as avestruzes e pinguins), a fêmea vai ter ciclicamente um período, que está mais vulnerável aos perigos naturais, menos capaz de se defender, e com necessidades específicas que a tornam merecedora de proteção e defesa face às vicissitudes do meio natural. A proteção da fêmea grávida é uma função que os outros membros do grupo (machos e fêmeas não gestantes) têm que assegurar e que vai de encontro a dois dos pressupostos sine qua non para a manutenção de vida, da espécie e do equilíbrio ecológico – auto conservação e auto reprodução.

Este facto é a primeira razão que estabelece uma identidade de género. A maternidade, e portanto a sobrevivência da espécie, deve ser defendida de uma forma eficaz. Se atualmente a defesa de forma violenta e física parece não ter sentido, no período a que se chama pré-história, onde o homo sapiens ainda tinha uma proximidade tão íntima com o meio natural que se tinha que reger pelos mesmos padrões das outras espécies, ou seja, a força física e a agressividade eram fatores de sobrevivência decisivos. A partir desse momento o comportamento das gestantes teve de se modificar; não lutava, mas defendia-se /ou escondia-se e era protegida. Em sociedades estruturalmente dependentes dos ritmos naturais e da competição com outras espécies, o papel da fêmea tendia a ser diferente do macho; não menos ou mais importante, o valor da espécie e a sua sobrevivência apresenta-se como uma moeda - só tem valor com as duas faces. A cara não é mais importante do que a coroa e vice-versa. A questão é que o próprio ambiente e idiossincrasias específicas levam a que se desenvolvam papéis que em determinados momentos são diferentes e, portanto, ainda que por períodos curtos, existem diferenças de género.

Transpor literalmente os mecanismos naturais para a espécie humana, são perigosos e podem levar a falsas verdades. Se é certo que o ser humano é uma espécie natural e nesse sentido deve ter-se em conta os aspetos inatos, também é verdade que o homo sapiens se distinguiu das outras espécies pela inteligência raciocínio, transformação do ambiente e criação de uma cultura e envolvimento sociais que moldam e são, em muitas circunstâncias, mais relevantes e marcantes do que a sua genética.  

A aplicação das explicações naturais aos modos de vida humanos e estruturas sociais conduziram às teorias de Ratzel, sobre espaço vital, do Darwinismo Social (algo que Darwin sempre recusou), de Nietzsche e do super-homem de “Assim falava Zaratustra”, capaz de superar a máxima aristotélica - o homem capaz de viver sozinho ou é Deus ou uma besta – ou dos princípios ecológicos da Escola de Chicago. Todas estas teorias tiveram influência na elaboração de um sistema político e social baseado nas ideias frouxas de um demente, que ficaram conhecidas como Nacional-Socialismo, ou Nazismo.

Porém, a violência e rudeza de vida associadas à maternidade e ao,  geralmente, menor porte feminino, conduziu a que de uma forma ou de outra, as sociedades primitivas enaltecessem os feitos físicos dos guerreiros que protegiam o território e conseguiam alimento para a comunidade, em detrimento do desempenho feminino.

A nível religioso, as principais religiões monoteístas atribuem à mulher um papel secundário, de cuidadora da casa, dos filhos, do marido, mas sempre numa posição de descrição e resignação ao seu suposto defeito de não ser tão dotada como o homem.

Não tentando fazer aqui uma história do papel da mulher, a verdade é que ao longo dos tempos sempre se tentou justificar e provar “cientificamente” a inferioridade feminina, de modo a justificar a sua subalternização.

Se as religiões estabelecem as suas normas a partir de cosmogonias próprias e pretendem estabelecer uma ordem e padrões de comportamento sociais e individuais – Cosmos, do grego, ordem, organização, universo; génos, origem, nascimento – tendo como base a fé, a ciência também o tentou, e por vezes ainda propõe as suas visões “definitivas do Mundo”.

No século XIX, Paul Broca (1824- 80), professor na faculdade de Medicina de Paris, foi pai da craniometria. Com um trabalho, aparentemente científico, conseguiu, através de medições de crânios, sustentar a inferioridade feminina, particularmente no que respeita à sua “fraca” inteligência. Carl Sagan (1987) trata este cientista de forma algo benevolente, revelando até uma peripécia relacionada com desvios de fundos, alegadamente para proteger o dinheiro de fundos de pensões, mas Stephen J. Gould (1990), n’”O Polegar do Panda”, arrasa esta suposta investigação científica. Broca mediu os cérebros de dezenas e dezenas de homens e mulheres, chegando à conclusão de que o cérebro das mulheres é sistematicamente menor que o dos homens. Mesmo admitindo que as mulheres são, em média, mais pequenas do que os homens, não entrou em linha de conta com este pormenor e escreveu:

“ Poderíamos perguntar se o pequeno tamanho do cérebro da mulher depende exclusivamente do pequeno tamanho do seu corpo. Tiedemann propôs esta explicação. Mas não devemos esquecer que as mulheres são, em média, um pouco menos inteligentes que os homens, diferença que não deveríamos exagerar, mas que não é por isso menos real. É-nos portanto permitido supor que o tamanho relativamente mais pequeno da fêmea depende em parte da sua inferioridade física e em parte da sua inferioridade intelectual.” (Broca)” (apud Gould, 1990: 173).

Preocupado igualmente com os aspetos evolutivos, Broca mediu cérebros pré-históricos, onde a força física era imprescindível para a subsistência, e chegou à conclusão que a diferença em centímetros cúbicos era bem menor que a atual; voltou-se a esquecer da proporcionalidade do tamanho do cérebro em relação à dimensão corporal - na pré-história a diferença de altura entre os machos e as fêmeas era menor. Um dos seus discípulos, para justificar os dados e acentuar a inferioridade feminina, escreveu:

“O homem que luta por dois ou mais no combate pela existência, que tem toda a responsabilidade e os cuidados de amanhã, que está constantemente ativo combatendo o ambiente e os rivais humanos, necessita de mais cérebro do que a mulher, a qual tem de proteger e alimentar, a mulher sedentária, a quem faltam ocupações interiores e cujo papel é criar as crianças, amar e ser passiva. (Topinard)” (apud Gould, 1990: 173).

Podemos pressupor que este olhar para a inferioridade feminina era algo científicamente e datado, e que o avanço da ciência tratou de apagar. Podemos ler interpretações da inferioridade do sexo feminino em muitos textos atuais de grupos religiosos americanos e de pseudo-ciência que nega a evolução. Sobre estas posições, pode ler-se o livro coordenado por Augusta Gaspar, “Evolução e Criacionismo. Uma relação impossível” (2007). Noutra perspetiva, mesmo no tempo de Broca, Gould (1990) cita Manouvrier como exemplo de um cientista que se opunha ao simplismo da análise main stream da inferioridade feminina:

“As mulheres exibiram os seus talentos e os seus diplomas e invocaram também autoridades filosóficas. Mas estavam confrontadas com números desconhecidos de um Condorcet ou de um John Stuart Mill. Esses números caíram sobre as pobres mulheres como um martelo-pilão e foram acompanhados por comentários e sarcasmos mais ferozes do que muitas imprecações misóginas de certos patriarcas da Igreja. Os Teólogos perguntaram se a mulher tinha alma. Alguns séculos mais tarde, um punhado de cientistas revela-se pronto a recusar-lhes uma inteligência humana (Manouvriers)” (apud Gould, 1990: 172)  

Este tipo de raciocínio, para além de se aplicar às mulheres, aplicou-se igualmente aos aspetos raciais, dividindo os seres humanos numa escala de inteligência rácica. Fazendo um trocadilho com o nome do Dr. Down, Gould (1990) escreveu uma crónica intitulada “O Síndroma do Dr. Down”. Baseado em procedimentos supostamente científicos, este médico hierarquizou as raças, sendo os brancos caucasianos o topo da inteligência e da evolução, ficando os mongóis na base; a sua inteligência era comparada à de um portador de Trissomia XXI. Foi a partir destes “estudos” que se passou a apelidar de mongoloides as crianças com trissomia XXI. O Dr. Down chegou mesmo a estabelecer uma hierarquia de criados acompanhantes de crianças brancas, sendo que nas idades mais precoces (até aos três anos) poderiam ser acompanhados por pessoas de raça mongol.

Temos acentuado as consequências das diferenças de sexo e algumas das formas como as diferenças foram suportes para justificar relações desiguais entre sexos.

Porém, a barreira distintiva entre diferenças sexuais e de género é culturalmente muito ténue e por vezes acontecem confusões que entrecruzam aspetos óbvios de sexo, com facetas culturais de géneros.

Um fator ligado aos aspetos sexuais e físicos de diferenças entre homens e mulheres diz respeito à força, para que através desta se justifique a superioridade do macho.  

Esta característica aparece no Guião de Educação Género e Cidadania (Enquadramento Teórico, 2011:13) como “a chamada perspetiva de enviesamento alfa – enquanto outros se inclinam a evidenciar principalmente as semelhanças – a chamada perspetiva de enviesamento beta.” Este tipo de raciocínio parece estar de acordo com uma visão animal dos fenómenos, que nem sequer está correta. A perspetiva Alfa remete para as diferenças entre os indivíduos, para a sua afirmação face ao grupo. Nos grupos de animais onde se estabelecem hierarquias e comportamentos de liderança e de submissão, o Alfa afirma-se pela diferença e superioridade face ao grupo, conseguindo provir as suas principais necessidades de subsistência e defesa. Quando se evidenciam características de comportamento comuns a todo o grupo, isto é, sem se afirmarem pelas diferenças, mas pela adesão ao conjunto de aspetos comuns que nos tornam iguais e sem sobressair do grupo, seguindo apenas orientações de liderança, estamos perante uma perspetiva de enviesamento Beta. Comumente associa-se o Alfa ao macho dominante e Beta àquele que está em segundo, a fêmea, com importância na reprodução e na sobrevivência da espécie pelo cuidado e defesa dos futuros Alfas, mas sem afirmação de igualdade enquanto tal, face ao Alfa. 

Mas a natureza não se compadece com comparações simplistas. Em alcateias, matilhas ou bandos de algumas espécies de símios e macacos, o Alfa não é forçosamente o macho, nem tão pouco terá que ser o mais musculado ou agressivo membro do grupo. Nos lobos, é vulgar (número estatisticamente significativo) que o elemento mais astuto, com maior resistência, capacidade de orientação para procurar caça, refúgio e abrigo e capacidade de gestão de conflitos assuma a posição de Alfa, seja uma fêmea. No caso dos lobos do parque natural de Yellowstone, Califórnia, Estados Unidos da América do Norte, que são alcateias de animais de grande porte, mesmo dentro dos lobos (canis lupus), as fêmeas não são apenas as cuidadoras e responsáveis pela maternidade e continuidade da espécie, mas também o Alfa, por capacidades não diretamente relacionadas com a força para a luta dentro da hierarquia do grupo (Cf: Mech; Boitani. 2003).

“Certos traços como independência, competitividade, agressividade e dominância continuam a ser associados aos homens reunidos sob a designação de instrumentalidade masculina; a sensibilidade, a emocionalidade, a gentileza, a empatia e a tendência para o estabelecimento de relações continuam a estar associadas às mulheres, sob a designação de expressividade feminina” (Cardona, 2011: 13). A transposição de comportamentos zoológicos e generalizações aparentemente lineares para as organizações humanas levam-nos a conclusões pouco acertadas, ou seja estereotipadas.

Mas se as diferenças entre sexos levam a que, culturalmente, se aproveite generalizações sem sentido, para justificar distinções entre género, seria útil pensarmos se se justificarão essas diferenciações nas sociedades ocidentais do século XXI.

II - OS SEXOS DOS GÉNEROS

As diferenças entre sexos foram, ao longo da história, utilizadas para justificar a dominância do masculino sobre o feminino, mas levaram a extrapolações tão abrangentes como abusivas, para os papéis sociais de cada sexo, isto é, de género.

“O termo género é usado para descrever inferências e significações atribuídas aos indivíduos a partir do conhecimento da sua categoria sexual de pertença. Trata-se, neste caso, da construção de categorias sociais decorrentes das diferenças anatómicas e fisiológicas.” (Cardona, 2011: 12)

É óbvio que as diferenças sexuais levam a algumas funções de género impossíveis de contornar; um homem grávido ou a amamentar é ficção. Porém, socialmente, existem estereótipos de comportamentos que se atribuem a homens e mulheres. Estes comportamentos são construções culturais e sociais, são transmitidos por narrativas, que encerram simbolismos e significantes importantes para o funcionamento dos grupos, padronizações e criações de identidade. Não significa que exista uma relação de subalternização entre géneros ou que implique relações de poder desiguais. As desigualdades podem acontecer, mas são fruto da construção cultural e não são perenes; variam no tempo, no espaço e estão relacionadas com contextos pessoais e coletivos. Um homem,  pode assumir papéis de cuidador e demonstrar toda uma sensibilidade que comumente é atribuída às mulheres; mas em contexto social alargado, apresenta comportamentos tipicamente masculinos, dentro de um determinado padrão cultural. Claro que o contrário é também 100% provável.  

“Para além das diferenças genéticas entre sexos espera-se, na maior parte das sociedades, que os homens e as mulheres se comportem de uma maneira diferente e assumam papéis distintos. Ainda na linha de pensamento da autora atrás citada [Ann Oakley], convém ter presente que os conceitos de feminilidade e de masculinidade diferem em função das especificidades culturais, o que significa que variam no espaço e no tempo, apresentando definições distintas de época para época e, num mesmo período histórico, de região para região e são ainda sujeitos a readaptações de acordo com outras variáveis, como a classe social, a idade, a etnia e a religião.” (Cardona, 2011: 12)

A questão do género é portanto relativa a um conjunto de fatores, estando muito ligada a comportamentos sociais e culturais. A alteração de padrões no sentido de uma cidadania baseada na igualdade é um processo lento e de ritmos de mudança desigual. Até na última citação podemos encontrar marcas fortemente modernas, que em muitos contextos atuais pós-modernos não têm lógica; falar de classes sociais, idade ou etnia, faz pouco sentido. Para os pós-modernistas, grupos de interesses e abordagens aos modos de vida são fatores mais influentes na organização social, que uma visão marcadamente dividida em classes sociais em confronto e com interesses inconciliáveis. Estas duas visões continuam a subsistir conjuntamente e os hábitos e costumes vão, lentamente, alterando a paisagem social e a sua organização.

A sociedade pós-moderna e a sua organização social são voláteis e estão condicionadas aos padrões de consumo. É no consumo que o homem ocidental projeta a sua visão de si mesmo; a sociedade do século XXI é hedonista e self-centered.

Lipovetsky divide a evolução do consumo e das suas consequências a nível de organização social, em três fases: a primeira, dos fins do século XIX até à Segunda Guerra Mundial, foi baseada no consumo massificado, fruto da organização produtiva, segundo os padrões Fordistas e Taylotistas. Implementou-se o marketing de massas para o consumo, baseado no preço acessível dos produtos conseguindo economias de escala. Este período é marcado por “Uma tripla invenção: marca, embalagem e publicidade”[3]

Esta fase corresponde à expansão da burguesia e dos padrões de vida e valores burgueses. O proletariado ocidentalizado começou a perder a identidade de classe e a aspirar ao padrão burguês. Era um sonho possível, os salários subiam para suportar os mercados internos e externos; esta lógica permaneceu na fase seguinte.

Na fase dois, atinge-se o auge das teorias e práticas de produção fordista; “as palavras- chave na organização industrial são: especialização, estandardização, repetitividade, aumento do volume de produção.”[4] O acesso a produtos e padrões de vida até aí reservados às elites, pela quase totalidade da população, enfraquece a luta de classes. Parecia uma era de prazeres infindáveis; a máquina e a tecnologia estavam a libertar o homem do trabalho. O consumo representava também uma faceta ostentadora; cada um era o que podia exibir fruto da sua capacidade de consumo; já não chegava ter o automóvel (como nos primeiros tempos do Ford modelo T), o carro que se exibia estava relacionado com o sucesso social. Paralelamente, com a libertação da mulher dos conceitos vitorianos e a sua assunção como cidadão de pleno direito e igualdade com os homens, é uma época de grandes progressos.

Se em termos legais os problemas de igualdade de género pareciam estar em vias de resolução, na prática quotidiana o peso de uma cultura milenar ainda impunha padrões e comportamentos diferenciados e, fundamentalmente, inferiorizava (e ainda permanece) a mulher em termos de acesso a posições de decisão, a igualdade de tratamento no mundo do trabalho. Na vida familiar a situação era ainda marcadamente vitoriana, ainda que em termos de postura feminina e masculina a realidade estivesse a mudar. As alterações eram e são lentas, e a mulher acaba muitas vezes por acumular a vida profissional que conseguiu atingir com a maior parte das tarefas de cuidadora do lar e da família.

Em termos de estrutura social, a divisão de classes esbatia-se e afirmava-se uma divisão socioprofissional, baseada numa mobilidade social mais flexível que permitia a ascensão (ou pelo menos podia manter vivo o sonho) e minava o sentido de consciência social e de luta classes marcadamente marxista.

A fase III corresponde ao “homo consumericus”[5] ou o “consumactor”[6] - o consumo é uma experiência emocional. O que procuramos quando compramos é satisfazer aspetos afetivos do nosso imaginário, e conseguir vivências sensoriais.

“Na esteira da extrema diversificação da oferta, da democratização do conforto e do lazer, o acesso às novidades disponíveis no mercado banalizou-se, as regulações de classe desagregaram-se, e surgiram novas e novos comportamentos. (…) O consumo constrói-se cada dia um pouco mais em função de finalidades, gostos e critérios individuais” (…) Queremos «objectos para viver», mais do que objectos para exibir, compramos isto ou aquilo não tanto para ostentar, para evidenciar uma posição social, como para ir ao encontro de satisfações emocionais e corporais, sensoriais e estéticas, relacionais e sanitárias, lúdicas e recreativas”[7]

Neste ambiente social a mulher integra-se cada vez mais nos padrões pós-modernos, sendo o que pretende ser no seu imaginário; não está presa a padrões nem a pressões sociais. Porém, se este facto é verdade para uma parte cada vez mais significativa das populações, as imposições de um padrão anterior de pressões sociais e de narrativas de consumo estão ainda muito ligadas a métodos e técnicas de consumo, baseadas numa sociedade muito estratificada, onde as diferenças de género ainda vendem e tendem a persistir.

O estudo realizado por Isabel André (1999), referenciado no Guião de Educação Género e Cidadania, mostra como até num aparentemente inócuo folheto de supermercado estão subjacentes desigualdades de género ligadas a estereótipos, que cada vez têm menos razão de ser.

Aqui nem sequer vamos abordar a falsa abordagem de diferenças a nível cognitivo entre sexos, pela sua falta de sustentação e tolice de raciocínio, mas é verdade que ainda podemos observar comportamentos diferentes entre homens e mulheres, e que estes têm, muitas vezes, um significado estereotipado e simbólico que é importante para a organização e perceção do mundo, quando visto do ponto de vista infantil. O essencial é que as opções que tomemos sejam livres de preconceitos e estejam libertas de pressões.

A simbologia de género é importante para a criança, para a sua descodificação da realidade, embora nos posicionemos numa abordagem mais próxima dos conceitos pós-modernos, onde “se recusa a possibilidade de discursos universalizantes e generalizáveis acerca de género. Esta perspetiva desafia o caráter natural da diferença de género, sustentando que todas as características sociais significativas são ativamente criadas e não são biologicamente inerentes, nem permanentemente socializadas ou estruturalmente determinadas. Segundo este ponto de vista, o género não é apenas algo que a sociedade impõe aos indivíduos. Mulheres e homens escolhem certas opções comportamentais e ignoram outras e, ao fazê-lo, elas fazem o género.” (Cardona, 2011:16)

Para a criança, na idade pré-escolar - a necessidade de compreender o mundo com blocos lógicos bem definidos e sem atitudes variáveis - os estereótipos de género são importantes para a sua formação e, principalmente, para a sua integração na sociedade e no seu funcionamento mais geral.

O raciocínio infantil é descrito e apelidado por Kieran Egan de estádio de pensamento Mítico. O pensamento mítico pressupõe quatro características que permitem a leitura da realidade pela criança: o mito “fornece explicações exaustivas do porquê de as coisas serem como são, e fixando o significado dos acontecimentos através da sua relação com modelos sagrados.”[8]

Esta característica do pensamento infantil é essencial; a criança apropria-se do conhecimento do mundo por aspetos simbólicos, que estão encerrados nos mitos e nas visões mitológicas do real. A origem da palavra dá-nos a indicação: símbolo, do Grego, é o que une num significante vários conceitos; por oposição, diabólo é o que divide, desune. A narrativa mítica é simbólica e reúne em si mesma conceitos com os quais nos identificamos e apreendemos o mundo, a sociedade e o nosso lugar no coletivo.

A segunda característica está relacionada com a invariância do real; “tanto os mitos como as crianças carecem daquilo a que geralmente se chama o sentido da diversidade – o conceito de tempo histórico, as leis da física, as relações lógicas, a causalidade, o espaço geográfico.”[9]

O terceiro atributo é a incapacidade da criança compreender o mundo como algo separado de sí mesmo e da sua visão face ao real. Há “uma espécie de confusão entre o que é interno e o que é externo, ou uma tendência para fixar nos objectos, algo que é resultado da atividade pensante do sujeito. (Piaget, 1931) ” (apud Egan, 1992:24)

Por fim, a criança, para atingir a compreensão do mundo, articula-o em oposições binárias bem marcadas; os estados intermédios são complexos e dificultam a compreensão da realidade. Assim, se a criança observar um casal homossexual (feminino ou masculino) e não houver um juízo de valor ou pré-conceito, agrupa-o no conjunto dos casais e cria outro grupo onde as pessoas embora convivam, não são casais, nem se comportam como tal.

Para que compreenda o mundo, a criança necessita de o ver de forma simplificada - mesmo quando são conceitos mais complexos e/ou abstratos, deverão ser apresentados de acordo com o seu imaginário. Nesta altura, vai começar a demonstrar comportamentos de género, descodificando de acordo com a sua perceção o real. Este comportamento não entra em contradição com o anterior - a fase seguinte do estádio de desenvolvimento do seu pensamento é o romântico. Enquanto no primeiro estádio a criança necessita do mágico, neste identifica-se com as figuras que conseguem superar os seus medos, inseguranças e indecisões. A criança/jovem vai perceber a diversidade e mutabilidade do real e começa a adquirir comportamentos que correspondam à superação dos seus desafios de confronto com o quotidiano e o seu interior. A amplitude das suas escolhas não se limita aos padrões socialmente aceites; pode interiorizá-los ou enveredar por outras vias. “ Outra característica que é necessária para o conhecimento adquirido ter interesse neste estádio é que ele seja diferente; diferente de tudo o que é usual e convencional, diferente de tudo o que os estudantes conhecem e já experienciaram.”[10]   

“A manifestação de comportamentos típicos de género durante os primeiros anos de vida tende a preceder o desenvolvimento de uma compreensão sofisticada sobre o género, ou seja, sobre os modelos de masculinidade e feminilidade culturalmente dominantes”. Porém, à medida que se vai psicologicamente definindo e desenvolvendo, se não existirem pré-juízos, a liberdade de escolha e sentimento interior da criança/jovem vai definir o seu padrão, mais ou menos próximo, do socialmente predominante.

Nestas últimas páginas tentamos refletir um pouco sobre género, liberdade de escolha, pressões sociais e transformações na organização da realidade volátil onde estamos integrados. Mas se os sinais são no sentido da mudança, será que as alterações estão a chegar a todos os sectores e espaços, particularmente a Portugal e a Portalegre – pequena cidade do interior? A partir de uma profissão emblemáticas para o imaginário infantil, vamos analisar uma realidade, que não podendo ser imediatamente extrapolada, pensamos que fornecerá pistas para reflexão sobre a alteração do comportamento relativo à igualdade de género, à liberdade de escolha dos jovens e expectativas das crianças.

III – QUANDO FOR GRANDE QUERO SER POLÍCIA!

Lembro-me da primeira vez que fui a Inglaterra ter feito a observação, ingénua para um inglês, de que que a polícia não estava armada; se ocorresse algo, como poderia defender-se? A resposta veio com a típica sobranceria inglesa para com os continentais, que não percebem nada do que se passa no país pináculo da civilização: quando um polícia diz para parar, pára-se e nem está previsto outra hipótese que não a obediência. Na altura veio-me à cabeça a imagem de um polícia português, num bairro social desfavorecido, gritar para um meliante para parar! Sorri interiormente, não queria passar por um incivilizado do sul da Europa!

No caso português o contacto mais marcante do cidadão com a polícia é sempre marcado pela multa.

Por outro lado, quando algo de mau nos acontece, como por exemplo um assalto a casa ou ao carro, um dos primeiros gestos que nos ocorre é telefonar ou contactar a polícia. Se por acaso nos resolvem o problema, passam a heróis, rapidamente. Este sentimento ambivalente em relação à autoridade é também marcado por gestos de solidariedade para com a instituição e os seus elementos, em alturas em que se põe em causa a segurança dos cidadãos e a pacata vida dos portugueses. As recentes manifestações das forças policiais tiveram um forte apoio e aceitação de todos os setores da população e a infeliz morte de dois agentes, na perseguição de um grupo de assaltantes, fez surgir uma onda de solidariedade, respeito por esta força de segurança e de indignação face à falta de meios para poderem assegurar a segurança.

A admiração pelos polícias está relacionada com aspetos mais profundos do ser humano. Ao contrário do que o passado recente na Europa ocidental poderia fazer pensar, a história do homem é fundamentalmente a história da guerra e dos conflitos violentos entre grupos, países ou organizações. O mundo sempre foi violento; a natureza e a vida são violentas; sobreviver é violento. Não obstante esta constatação, a natureza não possui maldade; essa está reservada para o homem. A par desta constatação, o homem tem necessidade de segurança. Não é por acaso que popularmente se diz que a segunda mais velha profissão do mundo é a de espião. A espionagem começou com a necessidade de antecipar os movimentos de outros grupos, que pusessem em causa a segurança, a sobrevivência e as fontes de alimentação.

O raciocínio de cada um individualmente ou de um coletivo, que pode ir de um pequeno grupo a um Estado tende a estar estruturado de uma forma binária; nós e os outros, o conhecido e seguro, face à insegurança e ao desconhecido. Para que possamos descansar os nossos receios temos de construir organizações que zelem pela nossa segurança.

As crianças e jovens tendem a abordar o real de um modo simplista entre “Preto e Branco”, sem cinzentos. Esta atitude permite maior segurança na compreensão da complexidade que nos rodeia. Durante a “guerra-fria”, a perceção do mundo tendia a visões simplistas entre os maus – comunistas, e os bons, que asseguravam que o bem-estar e os direitos das populações estavam garantidos, nem que fosse, como nos filmes americanos, “Deus ex-máquina” a resolver os problemas, de tal forma que as turbações e sacrifícios valiam sempre a pena.

Para as crianças, como demonstram, Piaget e Egan, embora com abordagens diferentes, o mundo é descodificado por oposições entre conceitos binários bem marcados. Particularmente, o segundo autor, desenvolve o seu raciocínio na assunção de que as crianças compreendem a complexidade do mundo e, inclusivamente, conceitos abstratos, pelos jogos possíveis da organização do real em binários opostos e sem situações intermédias, com nuances pouco claras ou definidas. Assim, a profissão de polícia conjuga em si muitas das expetativas da criança para lidar com o mundo e com o que aparentemente está errado e é possível resolver pela ação de, por exemplo, um personagem mítico e heroico, como é o caso do POLÍCIA.

De acordo com o estádio de Pensamento Mítico definido por Egan, esta profissão corresponde a todas as quatro características básicas: o Polícia é mítico, dando segurança intelectual à leitura do mundo pela criança; O polícia é permanente, age para além das leis da física e das relações de lógica causal, tempo histórico ou espaço; o polícia representa conceitos que a criança conhece bem e pelo lado positivo – valente, honesto e bom.

Por fim, o polícia constitui-se como oposição binária à parte negativa da vida que a criança manipula através do seu imaginário: representa segurança, coragem, o amor e o bem. Para além disso, representa também a ordem e a autoridade. Por mais estúpido que seja, continuamos a ouvir mães ou educadores a ameaçar com a polícia se a criança não ingerir a sopa!

No imaginário infantil, muitas brincadeiras passam pelo exercício da autoridade, da heroicidade e da valentia: Índios e Cowboys  e polícias e ladrões; no entanto, muitas das narrativas e histórias mais ou menos clássicas opõem bruxas a fadas, fealdade a beleza, inocência a cinismo, honestidade e trabalho a preguiça e malandrice. A resolução dos problemas vem sempre da autoridade, que se consegue reunindo as qualidades atrás referidas. Para além desta evidência, a resolução de problemas pela violência praticada pelo lado do bem é justificável e até catártica para as opressões e inseguranças infantis.

Estereotipada e culturalmente, a estas características associa-se um papel masculino. O poder é exercido pelo homem; aos olhos da criança essa realidade é muitas vezes associada a força, o que reforça o papel masculino. O homem é maior, tem mais força e por isso é mais valente; no caso do polícia, vence os males que possam existir. O poder, o autoritarismo (não a autoridade), os trabalhos mais físicos e perigosos continuam, maioritariamente, a ser exercidos pelos homens e toda a narrativa social ainda se prende a estes padrões. A mudança está em curso, mas como em todos os processos sociais, é lenta.

O que vamos tentar perceber é a que ritmo se está a processar a mudança na profissão de polícia, particularmente analisando um caso que alia o papel típico de polícia à componente de decisão e cargo dirigente.

IV – QUEM QUER SER POLÍCIA? QUEM VAI SER POLÍCIA? QUEM É POLÍCIA?     

 Neste trabalho pedimos a colaboração de colegas Educadoras de Infância, no sentido de perguntarem e registarem as respostas à questão:” Quem quer ser polícia, quando for grande?”

A amostra foi de sete Jardins-de-infância do concelho de Portalegre, 2 em meio rural e 5 em meio urbano, com um peso por sexo de 50% meninas e 50% meninos. As idades situavam-se entre os 3 e os 6 anos. Foram inquiridas 131 crianças.

Quem quer ser polícia - total de crianças

Total de crianças

Feminino

%

Masculino

%

131

68

51,9%

63

48,1%

 

 

A percentagem de sins à questão posta foi de 19,1%. Porém, face à diversidade de profissões, incluindo muitas que também encerram mitologias aproximadas (Bombeiro, por exemplo), e tendo em consideração que nas classes etárias mais baixas, segundo as informações das colegas, ainda é muito frequente as crianças escolherem profissões como “Homem Aranha” ou “Zorro”, as 25 crianças que responderam que queriam ser polícias foi significativa.

Mais interessante ainda é a distribuição por sexo. Meninas 9 (36%) e 16 meninos (64%) querem ser polícias, esperemos que consigam, caso mantenham esta opção. O interessante é que, mesmo numa realidade marcadamente masculina, já existem algumas futuras mulheres em que o efeito de género não se manifesta. Este grupo, em relação ao total pesa 6,9%; sendo baixa, não deve, porém, ser desprezada; será positivo estimular este gosto, principalmente porque em termos de género podem ser sementes do caminho para a paridade.

Seria interessante ter feito e registado a mesma questão há vinte anos atrás e fazê-la, de três em três anos, por mais 21 anos, para podermos medir a velocidade da mudança, face à igualdade de género ou à liberdade dos sexos construírem o seu próprio género. Este tipo de análise diacrónica permite também tirar conclusões em relação aos adultos e às suas posturas face ao género e pressões sociais.

A segunda questão está relacionada com o grupo de estudantes que querem ser polícias e que frequentam (e frequentaram) o Instituto de Ciências Policiais e Segurança Interna. Este Instituto faz parte do grupo de instituições europeias de ensino superior de polícia e está vocacionada para a formação de oficiais e dirigentes desta força de segurança desde 1983.

Portugal (1983) tinha ainda uma democracia recente e uma sociedade ainda muito marcada pelo Processo Revolucionário em Curso, em que as instituições de poder e segurança tinham sido postas em causa por uma ordem militar, legitimada pela revolução. Outro facto que é que Portugal estava fora da então Comunidade Económica Europeia e a credibilização do país passava pelo controlo e qualificação das forças de segurança. O controlo de fronteiras e da ordem pública era uma condição imprescindível para o país entrar nesse grupo de países mais desenvolvidos do continente europeu e do mundo.

 Para além destas razões, a democracia, a liberdade e transformação do papel da mulher, de cuidadora e submissa para um cidadão de pleno direito, levou a que a instituição policial se abrisse, tal como já se passava em todos os países da CEE, ao sexo feminino - um mundo que até ai era exclusivamente masculino: a chefia de forças de segurança.

Desde 1984/1985 ate ao corrente ano letivo (2014/2015) foram admitidos no Instituto 918 cadetes, a uma média de 29,6 por ano. Dentro deste número estão incluídos estudantes provindos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Desde o ano de 1988/89, entraram 199 candidatos destes países, correspondendo a 21,7% do total de cadetes. Esta realidade será tratada de uma forma um pouco diferente, devido aos contextos de proveniência. São países com sociedades muito mais tradicionais do que a europeia e portuguesa, onde o papel da mulher ainda não atingiu, nem a nível legal, os mesmos direitos do homem. Para além desta realidade objetiva, existem fatores históricos, culturais e religiosos que influenciam a igualdade de sexo e género. Embora no total estes dados possam introduzir uma distorção, ela é pequena e sem grande significado.

Elaboração Própria

Elaboração Própria

O Gráfico é elucidativo relativamente à paridade (ou falta dela) entre sexos neste instituto e, por extrapolação, pelo peso das mulheres nos lugares de chefia da Polícia de Segurança Pública. Existe uma tendência crescente no número de mulheres admitidas, embora com números inferiores aos dos homens. A média masculina situa-se nos 88,3% ficando o restante para mulheres.

Esta realidade não se pode atribuir diretamente à Polícia. As regras estão definidas para os candidatos e existe uma relação entre provas físicas e classificações obtidas no ensino secundário. A apetência para concorrer a este tipo de carreira é que provavelmente é menor por parte do sexo feminino. Este dado terá uma multiplicidade de fatores explicativos, dos quais a organização e pressões sociais sobre a mulher estarão certamente num primeiro plano.

O risco associado à profissão, a instabilidade relativa ao local de trabalho, o arquétipo da mulher-mãe, o contacto com um mundo predominantemente masculino que obriga a mulher a um duplo trabalho de afirmação perante a profissão e perante os colegas, são fatores que pesam nas decisões de jovens, que muitas vezes ainda não definiram o seu caminho e opções de vida, e que afastam o género feminino desta escolha.

Aqui faz sentido o conceito de género e não de sexo. Género é uma criação social e se hoje nos é permitido, no campo teórico, escolher o género, ou não ter sequer uma pertença a um género estereotipado, a vivência do quotidiano ainda é penosa para quem assume outras escolhas que não as padronizadas.

Um cruzamento que se pode fazer destes dados é das expetativas infantis com as opções dos jovens; se tomarmos como medida as respostas das crianças, 36%, e as dos cadetes, 11,7%, verificamos que a descida é acentuada. Qualquer leitura seria abusiva; no jardim-de-infância ainda é permitido “querer ser super-homem”, no final da adolescência a realidade impõem-se ao sonho. Felizmente poucos pensam em género na maioria das profissões que se escolhem. No ensino superior, a maioria das saídas profissionais já não estão marcadas por diferenças de género; quando o caminho é profissionalizante, também as escolhas têm uma carga cada vez menos pesada de papéis estereotipados. É nas profissões com uma carga física e de risco maior, ou nas instituições castrenses ou paramilitares, que o efeito de género se faz sentir de forma mais acentuada.

Se o que dissemos é verdade para Portugal, para países que tiveram uma história de repressão e desestruturação das suas organizações socias, como a ex-colónias, o caminho para a igualdade de sexo e género, face à realidade social, ainda terá que percorrer um longo caminho, lento e penoso. Não assumimos a posição de que tudo o que está relacionado com atraso social se deve à colonização. Assumimos como atraso social aquilo que é relativo aos valores e ao padrão da cultura ocidental e assim, estamos a distorcer a direção da mudança que essas sociedades estão a sofrer. No entanto, independentemente da direção das alterações, a prevalência dos direitos humanos tem de se tomar como medida mínima. A igualdade entre sexos e a opção por papéis individuais numa sociedade, enquadram-se num conjunto de princípios e valores que deveriam ser, transversais às sociedades e culturas humanas.

Se a prevalência dos direitos humanos, no mundo ocidental, ainda não é clara e indiscutível, em sociedades onde existem cargas muito fortes de tradicionalismos, esta realidade ainda é menos visível. Assim, quando analisamos os dados das mulheres que ingressaram como cadetes, devemos ter em consideração que estes sinais são tão ou mais importantes que aqueles que vamos detetando na sociedade portuguesa. Outro aspeto que também deve ser levado em conta é o método de seleção dos candidatos PALOP. Existe um número de vagas pré-definido e acordado entre instituições e governos; assim, os cadetes PALOP não passam pelo crivo dos candidatos nacionais.  

A participação dos cadetes vindos de África iniciou-se no ano letivo de 1988/1989. A primeira mulher entrou 10 anos depois dos acordos de cooperação entrarem em vigor (1998/1999). Em 17 anos, apenas entraram 14 cadetes femininas, sendo que houve anos em que não houve candidatos mulheres, e quando existiram, os números variaram entre uma ou duas. Estes números, sem significado estatístico, contrastam com o número de homens que, e a percentagem, significativa, de estudantes PALOP no total de entradas.

Elaboração Própria

A linha do total é praticamente coincidente com o Total, revelando a baixa procura do curso pelas jovens mulheres residentes nos PALOP.

Por último, apresentamos a realidade de um Comando Distrital do Interior de Portugal – Portalegre – onde todas as razões (já atrás referidas) que pressionam as mulheres a não enveredar por este tipo de profissão se fazem sentir com intensidade.

Em Portugal, é recorrente dividirmos o país em litoral e interior. A faixa de terreno de cerca de trinta quilómetros a partir da costa atlântica corresponde ao país desenvolvido onde as novidades chegam primeiro. O interior é associado a atraso e populações retrógradas. No entanto, a facilidade de comunicações e as acessibilidades tendem a uniformizar o país. Os grupos de pessoas mais resistentes à mudança, tanto o são no interior como o seriam no litoral, mas, devido ao despovoamento, estas opiniões tendem a ter maior significado.

Em termos de dados do Comando Distrital da PSP de Portalegre, a percentagem de elementos do sexo feminino é mesmo insignificante.

                    Dados do Comando Distrital de Portalegre da PSP

Total de efetivos

Fem

% Fem

Masc

%Masc

181

5

2,8%

176

97,2%

Oficiais

1

11,1%

12

92,3%

Agentes

3

2,1%

140

97,9%

Chefes

1

7,7%

24

92,3%

 

Estes dados refletem a pouca representação do sexo feminino no interior, sendo que as chefias continuam a ser masculinas, refletindo também a desigual percentagem de homens e mulheres que se verifica no ISCPSI.

Outro fator que contribui para a baixa representação do sexo feminino no interior prende-se com as opções dos jovens. Quando os cadetes acabam o curso tendem a escolher meios desafiantes; assim, a carga demográfica do litoral abre um maior número de vagas e encerram desafios, investigações e estímulos que atraem os finalistas. O despovoado interior é mais associado ao “trabalho de secretária” e não a ação no terreno.

V – SERÁ QUE VOU MESMO SER POLÍCIA? 

As conclusões que se podem retirar deste trabalho são forçosamente limitadas. Faltam dados relativos às escolas de agentes de polícia, que formam a maior parte do contingente; falta também verificar dados dos comandos distritais de todo o país, permitindo comparação entre o litoral e interior. A amostra de jardins-de-infância teria que ser territorialmente equilibrada e as crianças teriam que ser inquiridas de forma estratificada. Outra condição a estudar seria o significado sociológico desta profissão - em termos de representações sociais e de identificação de pressões culturais e locais, que pudessem trazer contributos para uma compreensão da esta força ser ainda um meio masculinizado.

Se nos faltam tanto elementos, qual o objetivo da realização deste trabalho? É um ponto de partida para investigações mais profundas, mas permitiu detetar pistas e tendências, que possibilitam estabelecer hipóteses e observações mais orientadas.

Este trabalho permite uma série de reflexões que podem conduzir a consciencializações de colegas e alterar as nossas práticas pedagógicas, enquanto indutores de maior igualdade de género.

Não obstante o que expusemos, os dados apontam para algumas conclusões, em contexto de caso de estudo e, portanto, não imediatamente extrapoláveis. Relativamente aos dados das expectativas das crianças, até à realidade do Comando Distrital de Portalegre, o que se verifica é um estreitar dos caminhos e das percentagens. Se à partida existe um número de crianças com algum significado, cerca de 19%, sendo que meninas a quererem ser polícia a percentagem era de 36, no ISCPSI este número baixa para 11,7% e termina com 2,8%, no Comando de Portalegre.

Como em qualquer profissão que implica uma progressão a ascensão é sempre em pirâmide. Nem todos chegam ao topo e muitos vão ficando pelo caminho; o que chama a atenção nestes números é a redução relativamente ao género. Os meninos podem sonhar em ser polícias; é até muito provável que o atinjam, pois o campo alarga-se e a pirâmide dos números fica até invertida (64% - 88,3% - 97,2%); no caso do sexo feminino, as dificuldades serão difíceis de ultrapassar e estãoligadas a estereótipos de género e pressões sociais. Cabe aos educadores a transformação de práticas no sentido da paridade e das desigualdades até ao ponto em que a escolha seja feita livremente e não por condicionalismos de sexo ou papéis sociais.

V – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS       

Cardona, Maria João (Coord.) (2011). Guião de Educação Género e Cidadania. Pré-escolar. CIG. Lisboa

Egan, Kieran (1992). O desenvolvimento educacional. D. Quixote. Lisboa

Gaspar, Augusta (2007). Evolução e Criacionismo. Uma relação impossível. Quasi. Famalicão.

Gould, Stephen J. (1990). O polegar do Panda. Gradiva. Lisboa

Lipovetsky, Gilles (2009). A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Ed. 70. Lisboa.

Mech, David; Boitani, Luigi (2003): Wolves. Behavior, ecology, and conservation. University of Chicago Press. Chicago

Rosnay, Joël de (1977). As origens da vida. Do átomo à célula. Almedina. Coimbra.

Sagan, Carl (1987). O cérebro de Broca. Gradiva. Lisboa

 

 

[1] Rosnay, Joël de (1977). As origens da vida. Do átomo à célula .Almedina.Coimbra. p 45-46

[2]Dicionário Prinberan da Língua Portuguesas, 2008-2014, [consultado em 11-05-2015]. http://www.priberam.pt/dlpo/estere%C3%B3tipo#

[3] Lipovetsky, Gilles (2009). A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Ed. 70. Lisboa. pp. 25

[4] Lipovetsky, Gilles (2009). A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Ed. 70. Lisboa. pp. 29

[5] Lipovetsky, Gilles (2009). A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Ed. 70. Lisboa. Pp 39

[6] Cachinho, Herculano (2006). Consumactor: da condição do indivíduo na cidade pós-moderna. Finisterra. XLI, 81. C.E.G.. Lisboa

[7] Lipovetsky, Gilles (2009). A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. Ed. 70. Lisboa. Pp 36

[8] Egan, Kieran (1992). O desenvolvimento educacional. D. Quixote. Lisboa. Pp:23

[9] Idem. Pp: 24

[10] Egan, Kieran (1992). O desenvolvimento educacional. D. Quixote. Lisboa. Pp:45