PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

Onde se situa o intérprete na relação entre o EU e o OUTRO?

A. Campos, C. Pedreira, M. J. Gomes e S. Silva
Agrupamento de Escolas do Bonfim

A identidade pode, segundo Tomaz Tadeu da Silva (s/d), ser definida como aquilo que se é e aquilo que não se é.

A identidade de alguém está ligada ao EU da pessoa, aquilo que ela é com as suas características e sua individualidade (o seu nome, a sua aparência, os seus gostos e sentimentos).

Por oposto ao EU de alguém encontra-se o OUTRO, que é todo aquele que não é o EU, é a diferença. O OUTRO só existe porque o EU existe e é no momento em que encontramos as diferenças que descobrimos a existência do OUTRO e, consequentemente, compreendemos melhor o EU. Por conseguinte, podemos afirmar que o EU e o OUTRO mantêm uma relação de dependência, “Numa relação de reciprocidade, o eu faz emergir o outro e o outro faz emergir o eu” (Stefanello, 1976, p.58-65 cit in Silva, 2000).

O OUTRO tem uma enorme influência na construção da nossa identidade, pois é ele quem nos julga, é ele quem nos aceita ou não e que influencia as nossas próprias decisões, e é nesta relação com o OUTRO que surge o EU.

Na maioria das vezes, consideramos que o OUTRO deriva do EU, isto porque temos por hábito pensar que somos a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos. Por exemplo, porque é que não dizemos o OUTRO e EU em vez de EU e o OUTRO? No entanto, tal como já foi referido, existe uma relação de dependência entre ambos.

Uma vez que ninguém vive isolado nem sozinho, viver em sociedade significa viver com o OUTRO, com quem se cria uma rede de interações que leva à partilha e à ajuda mútua, gera sentimentos, afetos e fomenta a aceitação da diferença. No entanto, também atraí conflitos, frustrações e riscos na relação que se mantém com o OUTRO.

O tradutor/intérprete de LG faz a ligação entre a comunidade surda e a comunidade ouvinte. É através deste que ambas as partes se conseguem fazer entender. Mas, então, onde se situa o tradutor/intérprete na relação entre o EU e o OUTRO?

Willard Trask (apud venuti, 2004:7) compara o tradutor a um ator, pois ele não se expressa a si próprio, expressa sim a obra, a vontade e os pensamentos de outras pessoas como se fossem seus.

Na verdade, o tradutor/intérprete de LG precisa de ter um pouco de ator, porque, numa tradução, este tem de expor os sentimentos da pessoa a traduzir. Se está a traduzir um raspanete de um professor a um aluno surdo, o intérprete, tem de colocar uma expressão facial (que corresponde à entoação na língua oral) que demonstre o descontentamento do professor; se está a traduzir a declamação de um poema, necessita de colocar expressão que revele os sentimentos que o mesmo quer transmitir. Da mesma forma acontece quando se traduz um indivíduo surdo para a língua oral, conforme a expressão do mesmo, o intérprete deve adaptar a sua entoação.

A diferença entre o tradutor e intérprete de LG e o ator é que o intérprete, dentro do mesmo espaço e num curto espaço de tempo, tem que interpretar várias pessoas e sem qualquer tipo de preparação. Outra distinção existente entre os atores e os tradutores intérpretes é que, regra geral, os atores interpretam na sua própria língua, enquanto os tradutores intérpretes de LG traduzem outra língua (tradução para voz) ou para outra língua (tradução para gestos), o que faz com que o tradutor intérprete tenha que ter tantos conhecimentos da língua e da cultura como os próprios falantes da mesma.

Por conseguinte, podemos afirmar que é realmente de extrema importância que o tradutor intérprete de LG tenha profundos conhecimentos sobre a identidade dos indivíduos surdos, não esquecendo nunca, todavia, a sua própria identidade.

Na sua tradução, o tradutor intérprete deve tentar ao máximo “encarnar” o OUTRO mas manter o seu EU sem existir uma mistura entre ambos. O tradutor intérprete deve tentar desvincular-se da sua personalidade para entrar o melhor possível na personalidade do OUTRO, respeitando o mais fielmente possível a mensagem que o mesmo quer transmitir.

Ou seja, podemos afirmar que o tradutor intérprete tem que se colocar sempre no papel do OUTRO, acabando por nunca ser o EU e, no fundo, sendo o OUTRO sem realmente ser o OUTRO, pois, apesar de tentar ao máximo transmitir a vontade do OUTRO, no ato da tradução há sempre algo que se perde. Por melhor que seja o intérprete, e que transmita a mensagem da melhor forma possível, há sempre elementos que escapam. Por exemplo, quando um tradutor intérprete acompanha um indivíduo surdo ao hospital, que se queixa de dores muito fortes, a verdade é que, por mais que o intérprete traduza com convicção as dores que o surdo expressa, o intérprete não as sente.

Podemos ainda depreender disto que tudo que, tal como Fernando Pessoa refere em relação aos poetas, o tradutor intérprete é um fingidor, porque, muitas vezes, finge aquilo que sente e aquilo que não sente. Ao colocar-se no lugar do OUTRO, o tradutor intérprete tem que transmitir, da melhor forma possível, ideias e vontades que, por vezes, vão contra os seus próprios princípios. Perante estas situações, o tradutor intérprete tem que reprimir a sua vontade, o seu próprio EU, e transmitir com convicção aquilo que está a ser expresso pelo OUTRO independentemente da sua vontade.

Por todas estas particularidades, podemos concluir que o trabalho do tradutor intérprete de LG nem sempre é fácil e acarreta muita responsabilidade. O intérprete tem que saber autocontrolar-se, gerir bem as suas emoções e perceber os limites da sua profissão.

O tradutor/intérprete de LGP, tal como já foi referido, tem que expressar a vontade do OUTRO e, para isso, tem que se colocar no seu papel. Para tal, o tradutor intérprete deve falar na 1ª pessoa, o que, por vezes, pode gerar algumas confusões entre os intervenientes que estão a dialogar.

Na prática profissional são várias as situações em que se geram algumas confusões, ou pela falta de conhecimento do papel do tradutor/intérprete, ou simplesmente pela dificuldade de encarar que o nosso trabalho é expressar a vontade do OUTRO.

Por exemplo, durante a tradução de uma aula, quando o professor coloca uma questão ao aluno surdo, esta é traduzida e, por conseguinte, este responde em língua gestual. Naturalmente, é traduzida a resposta oralmente tendo o intérprete de se colocar no papel do aluno, isto é, falar na 1ª pessoa. O professor pode deduzir que quem responde é o intérprete e congratulá-lo, ou censurá-lo, mediante o teor da resposta. Perante este tipo de situação, o intérprete deve explicar que quem respondeu foi o aluno e que simplesmente estava a ser transmitida a informação que o mesmo tinha dado. Deve, ainda, ser dada uma explicação adicional, esclarecendo o trabalho realizado, ou seja, que é traduzida toda a informação que é dita na sala, tanto para língua gestual como para língua oral. Para este trabalho ser executado, é necessário que o tradutor se coloque no papel da outra pessoa falando na 1ª pessoa.

Outra situação que ocorre com alguma frequência, principalmente com alunos surdos mais novos e que contactam com intérpretes pela primeira vez, é, por exemplo, quando o professor está a repreender o aluno e o intérprete está a traduzir. Como o aluno surdo necessita manter o contacto ocular com o intérprete, por vezes fica confuso, pensando que é o próprio intérprete que o está a repreender. Nestas situações, é necessário realçar, no início da tradução, que é o professor que está a falar e só então depois traduzir normalmente, assumindo novamente o papel do mesmo.

Ao refletir sobre estas questões, reconhece-se a importância da clarificação do papel do intérprete de LG aos sujeitos com quem intervém, para que confusões como estas não surjam. Este esclarecimento deve ser feito pelos próprios tradutores intérpretes.

Conclui-se, desta forma, a importância que assume o intérprete de língua gestual na relação entre o EU e o OUTRO, que nesta situação são indivíduos surdos e ouvintes. O intérprete, ao colocar-se no lugar do OUTRO, permite a interação entre ambos os indivíduos, facilitando a integração de parte a parte e possibilitando ao indivíduo surdo a sua inserção na sociedade, maioritariamente ouvinte, e ao indivíduo ouvinte conhecer e partilhar da cultura surda.

O intérprete, no ato da tradução, não é o EU nem é o OUTRO, mas ao colocar-se no lugar do OUTRO torna-se na ponte entre ambos. Como diz Mário Sá Carneiro “ eu não sou eu, nem sou outro, sou qualquer coisa de intermédio.

Referências bibliográficas

Becker, Julci Stefano; Ruedell, Aloísio. Ser na Perspectiva do Outro. In PDF de ufsm.br.

Bizarro, Rosa; (2007). Eu e o outro no acto de traduzir. Organizadora Rosa bizarro. Eu e o outro. Estudos Multidisciplinares sobre Identidade(s), Diversidade(s) e Práticas Interculturais. Areal editores.

Silva, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In: Silva, Tomaz Tadeu (org. e trad.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: vozes, 2000. p. 73-102.