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Vem aí o novo Programa de Português para o ensino secundário

Alexandra Lopes
Agrupamento de Escolas de Campo Maior

No que concerne ao Programa e Metas Curriculares de Português para o Ensino Secundário[1], a primeira diferença notória na leitura do documento é de natureza terminológica. São cinco os domínios do programa: Oralidade, Leitura, Escrita, Educação Literária e Gramática. Note-se que não se utiliza o termo competência mas prefere-se o termo domínio, não se vela a literatura sob atividade da leitura, não se desvalida a tradicional designação de gramática perante um pragmático funcionamento da língua. Este regresso a uma tradição é particularmente notório na introdução do termo educação literária. Quer-se ex ducere os alunos através de um trilho bastante estreito de textos, justificados pela sua “representatividade,”[2] enquanto valor histórico e enquanto valor patrimonial, de modo a permitir o acesso a um capital cultural comum.

Exatamente pelo explícito estabelecimento de um cânone restrito, este programa tem colhido algumas críticas, o que uma certa flexibilidade evitaria, em especial quando nos situamos no século XX e vemos excluídos autores como Mário de Sá-Carneiro, Cesariny, Sophia, Manuel António Pina… Ao instituir um corpus literário obrigatório, convém lembrarmo-nos da própria tautologia do termo clássico, uma vez que auctor classicus é, desde a Roma de Quintiliano, o que se lê na classe[3]. Ora, uma perspetiva bem-intencionada do ensino não explica, por si só, o fechamento rígido. Seria benéfico assumir uma razoável porosidade, nomeadamente na lista de obras do projeto de leitura.

Lembremo-nos que os textos literários não servem para coisa nenhuma, não têm nenhuma função instrumental específica e univocamente determinada. Ler um clássico é simplesmente melhor do que não ler, como disse Italo Calvino num livro que se tornou um referencial da pedagogia[4]. Harold Bloom, acérrimo defensor do cânone, di-lo de uma forma semelhante, ao afirmar o seu ceticismo perante a tradicional esperança social que relaciona qualquer obra literária com o bem comum.[5]

O texto literário figura no programa como paradigma de texto complexo, aquele que permite ler inferencialmente o mundo, garimpar a linguagem, trabalhar dialeticamente a memória e a recriação. A organização diacrónica dos conteúdos favorece a sedimentação, que não se quer parafraseadora, mas ousada no manuseio direto das tessituras do sentido. Os autores assumem o risco de trazer o longe para perto, como dizia Manoel de Barros, confiando na capacidade de abrandamento dos alunos e recusando a inexorável dumbness dos screenagers[6].

De facto, o texto literário será ensinado numa perspetiva escalar, tendo em conta uma multiplicidade de fatores como o vocabulário, a estrutura da frásica, a coerência, a organização, o conhecimento do mundo. Este aspeto tem particular importância, uma vez que ler é saber associar, ver o todo nas partes, sair de um estado infantil (lembre-se que infans, o que não fala, equivale a dumb no idioma inglês) para um estado de maturidade linguística. Men must endure. Their going hence even as their coming hither. Ripeness is all. Os homens têm de suportar tanto o facto de terem de morrer como a situação de terem nascido. A maturidade é tudo. Ficou célebre a frase shakespeariana, inclusa em Rei Lear. Aos professores compete curar a imaturidade, arranjando estratégias de compreensão, estabelecendo propósitos para a leitura, incentivando a persistência. No artigo The challenge of challeging Text, Shanahan, Fisher e Frey aconselham a uma fisioterapia do leitor, estabelecendo uma curiosa comparação: Learning to read challenging text is similar to undergoing physical therapy. Initially, such therapy is often painful and exhausting, and it’s tempting to cheat on the exercises a bit.[7]

Aliada desta perspetiva pedagógica, a gramática conta a história da língua portuguesa, insiste na etimologia, colabora com os textos lidos ou ouvidos para uma plena compreensão e para um uso linguístico competente. E o mesmo se verifica com o treino da oralidade e da escrita, com as quais se estruturam inúmeros reenvios entre os domínios, baseados na confiança metodológica do estudo dos géneros textuais. Este tratamento holístico da língua não corresponde, todavia, a uma divisão temporal equitativa entre as cinco áreas da disciplina, pois, no caderno de encargos do programa de português, o texto literário recebe, de facto, a maior fatia, com mais de 45% do tempo letivo destinado à educação literária.

A opção pela didatização textual a partir da noção de género permite articular pertinentemente vários domínios. A título de exemplo, verificamos que o género “exposição” abarca quatro domínios: leitura e escrita, no décimo ano; compreensão e expressão oral, no décimo primeiro. A noção de género implica fatores de adequação contextual e regularidades de organização textual que, depois de observados em vários exemplos, podem ser sistematicamente apreendidos e aplicados. Desta feita, os textos aprendem-se com os textos, através de uma apropriação modelar. Concomitantemente, são catalogados através das suas temáticas proeminentes: a questão épica; o sentimento amoroso; crítica e mudança social; humor, sátira e ironia… Esta inventariação visa, obviamente, facilitar o relacionamento entre as diversas obras lecionadas.

Relativamente ao programa anterior, encontram-se neste novo documento ausências consideráveis, das quais destacaremos a derisão dos textos do domínio transacional e a limitação drástica da licitude no trabalho de escrita como atividade de sala de aula. A primeira ausência compreende-se pelo enfoque dado ao texto literário. A segunda falta afigura-se menos expectável e sobre ela faremos algumas especulações.

Implementado o novo programa, se um professor sugerir a redação de uma carta, de um relato de vivências/experiências, ou de um texto expressivo e criativo, entra automaticamente na clandestinidade pedagógica. Estes exercícios de escrita, obrigatoriamente estipulados pelo anterior programa, foram ostensivamente banidos da prática letiva por inépcia. Considera-se que plasmar na língua materna a emoção e a criatividade não está ao alcance de todos e não é passível de avaliação. A cegueira do objetivamente mensurável leva-nos ao extremo de só abrir caminho para a redação de sínteses, exposições, apreciações críticas e artigos de opinião… O ensino promotor de uma vertente mais artística e experimental da língua é completamente ignorado.

Partindo do pressuposto de que o critério para desaconselhar a redação e a valoração de textos expressivos e criativos foi o seu inerente grau de subjetividade, não podemos deixar de considerar paradoxal que um dos objetivos da educação literária seja também bastante diáfano. Leia-se na página 47: Apreciar textos literários: 2. Valorizar uma obra enquanto objeto simbólico, no plano do imaginário individual e coletivo. O mesmo rigor que obnubilou a escrita de textos expressivos e criativos devia reconhecer que, sem o recurso a um sofisticado apreciómetro, jamais será possível o cumprimento da meta programática. Muito veladamente, continuamos a reconhecer na literatura a jouissence barthesiana, vinda diretamente da psicanálise; ainda encontramos no prazer do texto um antídoto para a frigidez individual e social, porém só o consentimos na receção literária e não o concebemos na produção académica. Ler para apreciar, mas escrever só para pensar…

Ironias à parte, terminarei este texto evocando uma memória de juventude. De facto, auxiliado pelo programa, cabe sempre ao professor, no uso dos seus conhecimentos científicos, pedagógicos e didáticos, adotar os procedimentos metodológicos que considere mais adequados a uma aprendizagem bem-sucedida[8]. O meu professor de latim, idoso como o de Cesário Verde, antes de dar por terminada a lição e deixar sair a turma, costumava dizer sentenciosamente: sat prata biberunt. Estas estranhas palavras, vindas do fim da terceira écloga de Virgílio: claudite jam rivos, pueri, sat prata biberunt, fechem os ribeiros, rapazes, a terra já bebeu o suficiente, deixavam-me, por dois motivos, muito feliz. Em primeiro lugar, porque podia ir ao recreio; em segundo lugar, porque, sob olhar benevolente, os meus conhecimentos eram cultivados e regados. O professor depositava esperança em mim: eu podia crescer.

  

[1] Helena C. Buescu, Luís C. Maia, Maria Graciete Silva, Maria Regina Rocha, Programa e Metas Curriculares de Português, Ensino Secundário, Ministério da Educação e Ciência, janeiro de 2014.

[2] Idem, p.4.

[3] João Barrento, Ler os clássicos com os clássicos. In A Espiral Vertiginosa: Ensaios sobre a Cultura Contemporânea. Lisboa, Cotovia, 2001, pp. 105-119.

[4] Italo Calvino, Porquê ler os clássicos? Lisboa, Teorema, 2009.

[5] Cf. Harold Bloom, Como ler e porquê (tradução de Clara Roland), Lisboa, Caminho, 2001

[6] Cf. Mark Baurlein, Too dumb for complex text? Teaching Screenagers, 68 (5): 28-33.

[7] Timothy Shanahan ,  Douglas  Fischer  e  Nancy  Frey,   The  challenge  of  challenging  text.  Educational  Leadership (Association for Supervision & Curriculum Development), 69 (6), 2012,  pp. 58-62.

[8] Cf. Helena C. Buescu et alii, op. cit, p. 33.