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Maria Guadalupe Transmontano
Professora Aposentada

Quem me convidou para colaborara na PROFFORMA conhece-me bem. De facto, é sabido que sempre pensei que na atividade docente se ensina e se aprende.

Um professor é um eterno estudante e colhe dos seus alunos ensinamentos de diversa ordem. As simples histórias que vou contar estão impregnadas desse movimento de vaivém.

I

Quando era estagiária, tinha eu uma turma do 7º ano que lecionava no anexo do Liceu Velho – o Convento de S. Francisco. Decorria o ano de 1975 e as RGA (reunião Geral de Alunos) eram frequentes.

Um dia, alertei os alunos para aulas que iam ser observadas pelo Orientador e recomendei-lhes que se portassem bem, o que talvez fosse desnecessário, porque formavam um conjunto interessantíssimo e atento.

Um deles disse-me então, vivamente, com um grande sorriso: “A Sotôra quer ver-se livre disso? Nós organizamos uma RGA!”

Claro que expliquei que me queria ver livre, mas cumprindo as minhas obrigações, logo sendo observada como mandava a lei…

II

Com estes mesmos alunos me deliciava na leitura comentada de “Bichos”, de Miguel Torga, tarefa que fazia então parte do programa.

Quando chegou a vez de caraterizarmos a Cigarra, notaram eles que eu nutria uma certa simpatia pela personagem.

Sabiam de alguns dos meus escritos, publicados na Imprensa Local, e a certa altura disseram-me:

“A cigarra é um poeta.”

“Aceito perfeitamente” – respondi.

“E é anarquista.”

E imediatamente a conclusão:

“Os poetas são anarquistas. É melhor escrever isto no esquema!”

E os olhos benignos e malandros sorriam para mim…

III

Já no Liceu Novo, hoje Secundária Mouzinho da Silveira, formou-se um grupo de Teatro Amador. Deram-nos a sala de Música, hoje desaparecida, ao lado do bar, para os nossos estudos e ensaios.

Para ali íamos depois das aulas, entregando-nos às dramaturgias, às leituras expressivas e pausadas, a gravações em cassette.

Havia violas, comentários e uma camaradagem tão sã que me fará sempre saudades.

Pensámos em fazer qualquer coisa pelo S. Martinho. O Conselho Diretivo não organizara nenhum magusto e nós não tínhamos onde assar castanhas. O álcool era, e muito bem, proibido. Tentámos pelo menos alegrar o intervalo grande, o dos 20 minutos.

Um dos do grupo, munido de um popular garrafão de 5 litros, meio de laranjada, abria o cortejo oferecendo um copo, enquanto as violas e as vozes enchiam o convívio.

O programa só tinha três etapas: despertar a curiosidade, levar os docentes a criticar a absurda ideia do vinho e fazê-los provar um copinho de laranjada quase sem sabor.

É claro que o Conselho Diretivo conhecia o plano.

IV

Naquele dia, o Fartouce (um abraço para ele) fartou-se pura e simplesmente da aula.

Era um rapaz simpático e compreensivo, mas nessa tarde ou manhã (já não me lembro) transformou-se numa grafonola, girando para a esquerda e para a direita, a criar uma inquietação que me cansava e impedia o natural avanço dos trabalhos.

Chamei-lhe a atenção duas ou três vezes e não foi suficiente.

Fartei-me!

Mandei-o sair e, perante uma ligeira resistência resolvi optar pelo teatro:

Peguei-lhe na pasta de executivo, puxando-o suavemente pelo braço, fiz-lhe uma vénia e disse com toda a seriedade possível: “Vossa Excelência, senhor Fartouce, é convidado a sair da sala. Não se incomode que eu própria lhe levo a pasta.”

À porta fiz nova vénia, saudei e pedi licença para a fechar.

A turma ia a bom rir e desde então, quando nos cruzávamos durante os intervalos, mesmo depois de ter deixado de ser meu aluno, comentávamos divertidos que nunca ninguém fora alguma vez posto na rua, de uma sala de aula, com tanta diplomacia.

Amigos para sempre.

V

Enquanto funcionou o Grupo de Teatro, no auge dos ensaios, os meus alunos tinham aprendido a dizer poesia: a interpretá-la, a fazer pausas, a estabelecer tons…

Ora, andando a minha turma de 9º ano às voltas com “Os Lusíadas” foi chegado o momento do “Adamastor”.

Nesse dia, tive uma ideia repentina: Entrei na sala a declamar “O Mostrengo” entre as filas, como o ator que aparece repentinamente de um canto da plateia e se dirige proximamente aos espetadores.

Seguiu-se uma salva de palmas e a pista estava pronta para levantarmos voo.

VI

O Folgado (um grande abraço!) levou uma aula a fazer-me de fel e vinagre, sem que eu adivinhasse o motivo.

Como se tratava de um jovem bem formado, meu amigo até, mostrei-me mais do que zangada, amargurada mesmo, pelo seu comportamento tão estranho nesse dia.

Voltámos a encontrar-nos na manhã seguinte, e logo à entrada, amigo Folgado disse-me:

“Sôtora, não estranhe que eu não colabore, nem diga uma palavra hoje. Não posso”.

Começamos as nossas tarefas, tudo corria bem e o Folgado não disse uma única palavra.

Quando a campainha tocou para a saída, exclamou: “Agora posso falar!” E perante a minha estranheza explicou: “Eu arreliei-a muto ontem. Decidi castigar-me a mim próprio, fazendo silêncio durante toda esta aula.”

Ri com satisfação.