PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

Cinema, didática e educação para  o espaço

Miguel Castro
Instituto Politécnico de Portalegre
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território - Núcleo da U .Coimbra

Lisboa, 18h e 32 minutos. Quarto de hotel com vista para a praça dos Restauradores. Já estive em melhores quartos que este. Piores também, mas é um quarto, tem wireless, o que me permite ir trabalhando. Ao meu lado, e por causa da facilidade de acesso à internet, a minha mulher fala ao telefone com a minha filha mais velha, através do WhatsApp. Modernisses que dão um enorme jeito, principalmente quando temos uma filha no meio do deserto, em Monument Valley.

Monument Valley, território Navajo e reserva índia (embora também existam outras tribos de índios norte-americanos nesta área, como os Hopi). Pobre população apelidada de Índios por um engano de Colombo. Fazendo parte do planalto do Colorado, a reserva Navajo abrange apenas uma parte do Arizona e do Utah. É a América dos grandes espaços, das estradas que não serpenteiam, mas que se perdem de vista, numa longa linha reta. É a América dos Índios e Cowboys de John Ford. De desertos infindáveis na extensão e na espetacularidade e beleza do cenário natural.

“Porque raio, em tanto lugar do mundo, logo vai escolher um sítio longe de tudo? No meio do deserto!” Ando sempre desejoso que as minhas filhas escolham lugares com mais meios ligados à “civilização” (desde infraestruturas de saúde a culturais, passando por condições de habitabilidade razoáveis para os meus padrões de conforto de burguês cinquentão) e com boas acessibilidades, para eu poder “matar” o sentimento tão português que é a saudade. Felicidade, nostalgia e sentimento de falta de alguém, neste caso das filhas – “Portuguesisses!”

Mas para quê lamentar-me? Não fui eu também responsável por ver em família, desde muito cedo, os filmes dos grandes espaços, das grandes viagens. ”Dances with wolves”, ou “Easy Rider” (para além do filme, a banda sonora ainda hoje acompanha road trips familiares). Foram estas paisagens, a forma de vida, a sensação de liberdade, que formaram a representação mental que a minha filha tem destes espaços. Desde nova que sempre teve a vontade de experienciar a viagem, a vida, o quotidiano nestas realidades. No seu quarto não existem posters de bandas de música, mas sim uma gigante imagem de Monument Valley e uma placa da Route 66 (On the Road – Jack Kerouac). Agora é emigrante nos EUA. Projeta a sua vida no país cuja imagem formou a partir do cinema, da música e das fotografias. Já viajou e trabalhou várias vezes nos Estados Unidos, e em quase tudo a perceção cinematográfica não a desiludiu no contacto com a realidade. Sabe, seguramente, mais da geografia física e humana dos EUA do que a maioria dos americanos. E tudo ‘por culpa’ do cinema. “A experiência fílmica é um lugar vivenciado, e através dela podemos compreender a organização das categorias da experiência convocadas na prática da paisagem.” (Azevedo,2006: 13 apud Velez de Castro, 2015:3)

Olho, do alto do 4º andar do meu quarto de hotel, para a rua abaixo e verifico que talvez mais de 60% dos transeuntes são turistas. Porque terão escolhido Portugal para férias? Será que o cinema português contribuiu de alguma forma para a construção da imagem mental do nosso país? Tenho sérias dúvidas, mas talvez os documentários e reportagens cada vez mais frequentes chamem a atenção para o nosso pequeno Portugal. Não tenho qualquer hesitação em afirmar que as imagens, documentários e vídeos promocionais influenciam as representações positivas de Portugal; porém, em questões de fluxos turísticos, a mensagem passada diretamente entre os viajantes ainda continua a ser a melhor promoção.

É o turismo uma migração? Também o é, de certeza; diferente e com características muito próprias. Na minha vida profissional lecionei e ainda leciono algumas cadeiras ao curso de Turismo. Um dos meios mais eficazes de motivar e incentivar a investigação, e percecionar a realidade de alguns destinos turísticos, são os documentários, vídeos promocionais ou mesmo novelas. Uma das questões que sempre levanto sobre as novelas brasileiras que têm S. Paulo ou Rio de Janeiro como cenário é: quantas vezes choveu nestes (2,3 ou mais) episódios? Nenhuma! Brasil é sol, praia, gente pouco vestida, festa, alegria. Não se promove um destino turístico com chuva e humidades relativas acima dos 80%. Mas é a partir do cinema, em sentido lato (imagens em movimento), que se formam imagens mentais. Para o geógrafo é a partir destas, muitas vezes falsas imagens e mensagens, que se parte à procura da geografia dos locais, das vivências e do quotidiano por detrás do filme. “Esta ideia é partilhada por Duque (2013: 48) ao destacar a importância do filme para a construção e promoção de lugares, também na perspetiva educativa sobre como olhar o território.” (Velez de Castro, 2015:3)   

“Ao contrário do que possam pensar, todos nós estabelecemos relações afectivas (positivas ou negativas) com o(s) espaço(s). Se conseguirem proporcionar uma experiência positiva, significante e significativa para a criança, num determinado espaço, ela vai estabelecer uma relação positiva com o local e tornar mais eficaz a aprendizagem. A introdução de conceitos geográficos (espaciais) e temporais (História) no pré-escolar e no 1º Ciclo do E.B. está também muito dependente da vossa capacidade de criar experiências interativas e com a intencionalidade de introduzirem a geografia neste níveis de ensino”. O professor de Didática do Estudo do Meio e Conhecimento do Mundo vai incentivando a que as alunas tentem tornar as visitas de estudo em instrumentos didáticos eficazes. Mas o processo começa, geralmente, a partir do cinema.

Fig.1: Retirado de Velez de Castro; 2015Durante alguns anos realizava fins-de-semana pedagógicos em ambientes naturais e complexos históricos construídos (como ruínas romanas ou castelos – Marvão, por exemplo). As futuras professoras e educadoras desempenhavam o papel de crianças, realizando atividades lúdicas nos espaços escolhidos, vivenciando experiências significativas que as envolviam com o espaço e facilitavam a compreensão de conteúdos e conceitos geográficos. Mas para que isso acontecesse com as crianças, tinha que existir uma preparação prévia, de forma a que a criança pudesse criar o seu universo mítico (tal como Kieran Egan o propõe, quer em “Estádios da Compreensão Histórica” (1990) quer n’ “O Desenvolvimento Educacional” (1992). Assim, a preparação das crianças era realizada a partir de filmes que as transportavam para as vivências da época pretendida e depois era-lhes apresentadas não só algumas formas de atividades quotidianas (ainda que ficcionadas), mas também práticas lúdicas a realizar nos espaços onde decorriam as visitas de estudo.

Devido à idade das crianças e aos objetivos pedagógicos traçados previamente, os recursos fílmicos não foram passados na íntegra; selecionaram-se excerto enquadradores do que se pretendia explorar com as atividades nos locais. Assim, para a visita às ruínas Romanas da cidade da Ammaia (perto de Portalegre), as crianças visionaram alguns excertos de filmes de Astérix e Obelix - como os Romanos viviam, como eram as cidades e que dificuldades enfrentavam.

Para as visitas de estudo a Marvão foram selecionados excertos d’ “A Espada Era a Lei” (Walt Disney). Cavaleiros torneios e caça, as atividades que seriam típicas dentro dos castelos do imaginário infantil de magia, príncipes, cavaleiros e princesas.

Tendo em conta o esquema proposto por Velez de Castro, atrevemo-nos a propor uma fase 3,5. Esta fase intermédia prende-se com as atividades lúdicas e interativas entre as crianças e o locos da experiência. O atribuir relação positiva e significativa com o espaço, para que a aprendizagem fosse facilitada e interiorizada. Em Marvão simulou-se um torneio e um assalto ao Castelo; as crianças tinham escudos de cartão e espadas de plástico, mas no seu imaginário, reviviam todas as imagens mitificadas a partir das histórias ouvidas e, essencialmente, dos filmes a que assistiram (com um guião orientado pela educadora ou professora do 1º Ciclo para as idades mais baixas, ou lido para as crianças a partir do 3º ano). Na Ammaia simulou-se a extinção de um incêndio, à moda dos Romanos, onde as crianças também envergavam adereços alusivos à época e uma caça ao “Javali”. Através do cinema, as crianças transportaram-se para a época, para as aventuras e para seu imaginário. Ficaram com memória viva do espaço, compreenderam conceitos e, mais tarde, em contexto de sala de aula, puderam comparar a realidade com o cinema, mas também formar uma imagem mais concreta do que se pretendia introduzir. As alunas e educadoras foram unânimes quanto à eficiência didática do cinema. 

“Também Adams (2005), com base nos estudos de Robert Sacks (1997), se refere à forma como os indivíduos percebem e se relacionam com determinados lugares, entendendo que há três tipos de elementos que explicam esta relação: a natureza, o significado e as relações sociais. Ora a Geografia e o Cinema, como campos de investigação, assumem uma dimensão interdisciplinar, em parte fruto da dinâmica das espacialidades ficcionadas, pois retratam a geografia cultural e social do quotidiano.” (Velez de Castro; Campar de Almeida. 2016 p:165)

Retirado de Velez de Castro; 2015:5O professor geógrafo, em contexto de sala de aula, pode tornar-se numa terceira visão. A experiência, mas também a minha sensibilidade, têm demonstrado que o filme possui uma narrativa própria, com um ritmo e cadências que lhe conferem um significado. Tal como a banda sonora ou a fotografia, a obra cinematográfica é una. O contexto de sala de aula, é um conceito variável que está, na minha perspetiva, intimamente ligado ao nível de ensino. Passar um filme, como por exemplo o “Cinco dias, cinco noites” (Fonseca e Costa, 1996), numa aula de secundário, ou de 9º Ano (em ambos os ciclos se abordam as migrações) exige pelo menos mais do que uma aula, sendo que o ritmo e a unicidade da obra é quebrado. As aulas são de 50minutos, que como se sabe não são líquidos - sentar, marcar faltas, sossegar e iniciar o filme – reduz o tempo útil desta obra que tem a duração de 100minutos. Se levarmos em conta o roteiro proposto por Velez de Castro na figura 1 (com o qual concordamos e já pusemos em prática em várias ocasiões), o tema das migrações em qualquer dos ciclos referidos levaria, seguramente, mais do que uma semana; pelo menos duas, segundo o feed-back dos colegas. “Isso é tudo muito bonito para vocês, no superior. Para nós, com os programas que têm metros de conteúdos, as possíveis inspeções e a necessidade de aprovação de saltar matérias programáticas, pelo Pedagógico e Direção… não pode ser. Só se cortarmos o filme às fatias, e mostrarmos só o que nos interessa”. É esta a terceira visão do professor geógrafo ou do professor do 1º Ciclo ou Educador: cortar o filme de acordo com a sua necessidade. Não é a visão do realizador (apenas parcial), nem do investigador; é a do ator prático, a terceira visão, que tenta utilizar instrumentos didáticos motivadores e que suportem e desenvolvam o pensamento crítico, uma postura interventiva, participativa e de investigação, por parte dos alunos, mas que seja coartada e condicionada por um contexto mais vasto que a sala de aula – o contexto escolar quotidiano de 22 horas de aulas e mais 13 de trabalho, em escola, dentro de espaços sem condições, sem contar com aquelas que cabem a todos os docentes, de todos os níveis de ensino - as passadas em casa a procurar cumprir em pleno as funções de professor.

- “Professor, filmes em aulas de 2 horas, não! Depois é sair e na aula seguinte já se foram muitas das coisas que me lembrei na altura. É que não consigo escrever tudo o que me vem à cabeça. Ver o filme, tirar notas para o guião e outras coisas que vou associando… não dá!”

 - O professor dá-lhes razão! – “Também não gosto, no ensino superior, da “terceira visão”, o filme, mesmo que seja para abordar um conteúdo didático, tem uma narrativa, constrói um ambiente, envolve quem o vê, e não pode ficar partido pela aula seguinte. Pessoalmente, não gosto de “canibalizar” o filme, colando fragmentos que conduzam à minha visão quer da obra, quer do fenómeno social ou geográfico que pretendo abordar. Percebo, no entanto, a posição dos colegas do básico e secundário, que mesmo com as dificuldades vão fazendo do cinema um instrumento didático na Geografia.

Todos os anos passo documentários, dependendo da Unidade Curricular; uns assumem uma visão muito marcada do problema, e são ótimos para debater e cruzar diversas perspetivas e abordagens; outros são mais objetivos e servem quase como um texto, mapa ou gráfico. Em qualquer dos casos, embora com uma sequência e uma lógica interna (também cinematográfica) são mais suscetíveis para cortar em partes. Utilizo vários episódios (mesmo no tema das migrações) da série de António Barreto – “Portugal: Um Retrato Social”. Em muitos destes documentários são os próprios alunos que pedem para parar. A pausa serve para discutir, debater, criticar, apresentar exemplo – dão vivacidade à aula e sentido aos conteúdos. Ensina-se e aprende-se a partir das imagens em movimento. No caso do documentário, embora o guião prévio seja um “fio condutor”, a possibilidade de parar, discutir, ou mesmo rever, não o diminui como obra, ou seja, como documento válido, quer para o ensino, quer como investigação, ou ensaio sobre um determinado tema.

Uma das técnicas didáticas em que sempre insisto com alunos do curso de Educação Básica, ou quando estou na posição de formador de colegas, é o uso da narrativa. Todos gostamos de uma boa história, e recorrendo uma vez mais a Egan, em todos os estádios de desenvolvimento, as narrativas são essenciais, embora as interpretações e necessidades de conseguir torná-las um objeto didático dependa do estádio de desenvolvimento em que nos encontramos. Quando me perguntam o porquê desta insistência, a resposta é simples: mesmo na história, lenda ou narrativa mais fantástica ou imaginária, existe sempre um suporte físico, onde ocorre a ação. Assim sendo, a partir de uma narrativa eu posso sempre explorar e introduzir vários temas da geografia. Não há história sem Geografia. Esta minha posição é reforçada por Velez de Castro (2016:165), quando refere: “Tendo em conta esta ideia, alguns geógrafos, em especial a partir dos anos 80 do séc.XX, diversificaram o âmbito analítico das suas pesquisas, tomando como instrumentos de trabalho a literatura, a arte, a comunicação social, a música, a banda desenhada, a literatura de viagens, os anúncios, a televisão, os postais, os filmes, entre outros, como forma de entender a dinâmica das ações humanas sobre o ambiente, e como tal se pode refletir na paisagem.”

Uma aula de Geografia Política e Atualidade foi pensada e concretizada a partir da música dos Rolling Stones, “Simpathy for the Devil” (a partir de uma gravação ao vivo em suporte vídeo – documentário/cinema). Os acontecimentos geopolíticos contidos na letra serviram de base para grande parte da história da geopolítica do século XX.

Uma das frases que por vezes apresento para comentário dos alunos é a seguinte - “Arquimedes terá dito: dêem-me um ponto fixo no universo que eu com uma alavanca consigo levantar a terra.” Eu costumo dizer: dêem-me uma narrativa e eu consigo ensinar Geografia.” – A minha comparação com Arquimedes é demasiado excessiva, e trato sempre de o lembrar aos alunos, mas a minha frase é igualmente verdadeira.

Mas o que é o cinema, ou o documentário, senão o contar de uma história? Se esta afirmação é verdadeira, então posso deduzir: dêem-me um filme (mesmo dos muito maus) e eu posso ensinar Geografia! 

Uma última nota sobre a construção e desconstrução de paisagem (reais ou fictícias) a partir do cinema, neste caso da publicidade. A minha mulher tem uma paixão por cavalos. A forma como se relaciona com este animais de grande porte é de uma intimidade desconcertante, mesmo para os especialistas. Sem violência, mas com muita sensibilidade, os animais, criados desde muito pequenos, obedecem-lhe com agrado. Um amigo nosso, que educa e treina animais para cinema, depois de ver a relação que a minha mulher desenvolvia com os animais, convidou-a para participar com duas éguas num anúncio da Vodafone – o despertar da primavera.

Algures na Serra de Sintra, fim do inverno. Uma paisagem lindíssima; uma clareira com algumas árvores. Do “nada” aparecem camionetas de onde saem homens e mulheres, máquinas e maquinetas, e tudo se organiza para começar a filmar. Alguém grita: “Depressa para não perdermos a luz.” De repente, e depois do realizador dar ordem, um grupo de assistentes começa a espetar no chão de erva fresca e apetitosa (pelo menos as éguas assim o consideraram) flores de várias cores, arbustos e a colocar “pedras” de esferovite de grandes dimensões. “Não quero essa flor amarela aí. Mais para a esquerda.” Levantou-se vento e para meu espanto, passa por mim uma “pedra de granito”, de mais de um metro cúbico, a voar - as pedras já não são o que eram, pensei. As éguas lá desempenharam o seu papel (muito naturais, por sinal) e regressámos a Portalegre.

Duas semanas depois, a Vodafone lançou o anúncio televisivo. Para um Geógrafo, que tanto preza a paisagem, percebi quanto o cinema pode ser ingrato para este conceito – o local estava de tal forma transformado que a Serra de Sintra imitava, tal e qual, uma montanha Suíça, semelhante àquelas que aparecem no eterno filme “Sounds of Music”. O estrato físico estava presente, mas fico na dúvida se o cinema construiu, ou desconstruiu o real.

Bibliografia

Egan, Kieran (1990). Estádios da Compreensão Histórica. ESEP. Portalegre.

Egan, Kieran (1992). O Desenvolvimento Educacional. D. Quixote. Lisboa.

Egan, Kieran (1994). O Uso da Narrativa como Técnica de Ensino. D. Quixote. Lisboa.

Velez De Castro, Fátima (2015). O(s) lugar(es) do Cinema na educação geográfica, Actas do VII Congresso Ibérico de Didática da Geografia – Investigar para innovar en la enseñanza de la geografía, Universidade de Alicante, Espanha pp.433-443.

Velez de Castro, Fátima; Campar de Almeida, António (2016). Anatopias cinematográficas em contexto geográfico. Contributo para a (des )construção de Paisagens Imaginadas. In Velez de Castro, Fátima; Fernandes, João Luís J.(2016) (Coord). Territórios do Cinema. Representações e Paisagens da Pós-Modernidade. Eumed - Universidade de Málaga. Málaga