PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

 

que escuro vai dentro de nós*

João Matela
Profesor do ensino secundário / Ex quadro do Banco de Portugal

o meu tio aos 89 anos lembrou-se de perguntar por que razão tinha cada vez menos dinheiro no banco. por que razão havia mais gente desempregada. por que razão os espanhóis atravessavam a fronteira para vender cá deste lado o que os do lado de cá não produziam. coisas tão simples que um comentador despacha em cinco minutos no telejornal. ora esclareçam um homem à beira dos noventa que acaba de colher a azeitona. e tem o dia arruinado por um poço que derrocou. o meu tio tinha razão para estar abespinhado. com a azeitona no lagar a 26 cêntimos. com o gato que lhe mataram por maldade. com a minha tia a abalar de si própria ninguém sabia para onde. mas ele sabia onde eu trabalhava. sabia bem o que perguntava. inclinou-se para a frente como só os moucos se inclinam quando querem ouvir-se a perguntar. um esgar de sorriso velho e malicioso. ora vê lá se sais desta. não o disse mas pensou. eu quis sair sim por um buraco de verme. pedir as tréguas de um chá. saber da última excursão a fátima. então descruzei as pernas. inclinei-me também e pedi que repetisse. para rebuscar tralha no sótão da preguiça. redobrou as queixas com o eco da minha tia a ajudar à missa. tu é que sabes disso. a gente estamos velhos. a gente estamos sem cabeça. eu estupidamente disse que não estavam velhos. que tinham cabeça. e fiquei ridículo para sempre. eu não sei nada disso. não o disse mas pensei. e imaginei o método de hondt explicado a um lavagante. a falência das grandes narrativas a um louva-a-deus. piedade meu tio. piedade minha tia. eu sou apenas uma roda da engrenagem. mentalmente ajoelhei aos pés de todas as virgens negras. uma mola inofensiva do sistema. sim. um assessor do acessório. eu não tenho culpa. eu não sou tóxico. eu sou o subprime de mim mesmo. nunca roubei nada. nunca fui retorno absoluto. sequer a dívida soberana. eu reprovo os mercados e as agências de rating. as agências de rating são uma invenção da oprah e do jon stewart. eu cuspo nos swaps de cds. nos derivados de wall street. eu evito a city e o nasdaq. soros e madoffs que se concubinem. eu sou o vosso sobrinho. estão a ver? o vosso sobrinho. vão ao banco e levantem o dinheiro. esmurrem o caixa e eu ajudo. a tia que faça um lifting. o tio que vá a um spa. gozem a velhice. vejam o goucha e o preço certo. vão a braga e a lurdes. mas não me culpem. eu sei. nascidos pobres para morrerem pobres. nascidos brutos para morrerem brutos. nascidos tios para esta decepção. ó tios meus. ó minha santa ignorância. já viram o escuro que está?

 

* verso de “A gente não Lê”, de Rui Veloso e Carlos Tê