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“A Preto e Branco” – A Geografia na Educação Pré-Escolar

Miguel Castro
Escola Superior de Educação de Portalegre

Há já alguns anos que somos também corresponsáveis pela formação de Educadores de Infância na Escola Superior de Educação de Portalegre, na área do Conhecimento do Mundo, mais concretamente, no que diz respeito à Geografia.

A ciência geográfica, ao contrário do que popularmente é associada, não se reduz a um empilhar de conhecimentos, muitas vezes avulsos, sobre localizações, nomes de países, capitais, mares, montanhas, etc… Ela tenta explicar as relações entre o Homem e o planeta, isto é, o estudo do espaço terrestre e os fenómenos que nele ocorrem. Em suma, essencialmente a “Geografia adota uma atitude explicativa, procurando identificar, com recurso ao método científico, respostas para questões socialmente relevantes.”[1]

Olhada deste ponto de vista, poderá parecer difícil introduzir conceitos geográficos no pré-escolar. Demasiado complexo, ou ainda, demasiado abstrato, para crianças entre os 3 e os 5 anos. Embora sendo uma ciência do concreto, a diversidade de espaços e a dificuldade de acesso e interiorização dos mesmos, leva a que, numa primeira análise, a Geografia seja, para uma criança do pré-escolar, algo de distante, imaterial e não palpável.

Como introduzir conceitos geográficos e naturais, numa idade em que muitos psicólogos insistem em que as crianças do pré-escolar só conseguem lidar com o concreto?

Para que se possa atrair a atenção das crianças para a Geografia (ou para qualquer outra área do conhecimento) será aconselhável abordá-las por dentro do seu próprio universo. Como demonstra Kieran Egan[2], às crianças atrai mais o exótico, o estranho, o diferente, do que uma realidade quotidiana que tão bem conhecem e a qual é valorativamente menos interessante do que um mundo tão misterioso como o de Harry Potter! Ora independentemente das fantasias que podemos integrar, estas necessitam de um espaço físico concreto e real, ou seja geográfico.

A diversidade de meios naturais, humanos e de formas de vida atrai mais se for exótica. O deserto com as suas dunas imensas, escorpiões perigosíssimos, cobras de venenos potentes e lagartos alados que fazem parecer as criaturas fantásticas meras brincadeiras, são mais atraentes do que o jardim da esquina, que praticamente não tem segredos para descobrir. A apresentação de um ambiente como o deserto possui várias vantagens: permite, por um lado, introduzir conceitos como o de planície, calor, secura; e, por outro, sendo uma realidade distante, pode ser um campo fértil para a imaginação, passando a ser cenário de histórias e acontecimentos fantásticos, que por seu lado podem integrar outras Áreas das Orientações Curriculares, desde a Expressão Dramática ou Plástica até à Matemática.

A diversidade de ambientes climáticos e geomorfológicos pode ser facilmente explorada nos dias de hoje, com recurso a tecnologias - das mais sofisticadas, como os simuladores de voo, em computador, até às mais simples, como vídeos. Podemos até não recorrer a nenhuma tecnologia e socorrermo-nos dos tradicionais livros e imagens que de forma alguma são menos atuais, eficazes ou apelativos.

É neste contexto que um recurso omnipresente em todos os jardins-de-infância se torna num passaporte para a introdução da Geografia – as história e/ou narrativas.

Se pensarmos de forma estrita nos estádios de desenvolvimento cognitivo, parece não haver forma de introduzir conceitos geográficos mais abstratos na educação infantil, uma vez que se pressupõe que é necessário partir do concreto para o abstrato e do particular para o geral. Se assim é, a criança não poderá ir além, na educação pré-escolar, da realidade da escola, da casa ou, no caso dos mais velhos, uma ténue iniciação do percurso casa/escola e a algumas realidades próximas muito concretas. Ora Kieran Egan, propõe exatamente (ou quase) o contrário: a criança pode manipular conceitos abstratos se apresentada de acordo com o seu microcosmo, que é bastante mais vasto do que a realidade quotidiana - é fantástica[3]. Não que o concreto deixe de existir, ele vai, por aproximações sucessivas, sendo construído e é fundamental na interiorização dos abstratos, para que a criança possa, mais tarde, contextualizá-lo face a situações reais.

Este autor refere que a criança, desde cedo, manipula conceitos abstratos a partir de narrativas. Nas histórias existem valores que a criança compreende e manipula. O bom e o mau, o honesto e o vigarista, bem e mal, a amizade e inimizade.

A ideia que nos surgiu (já experimentada e com resultados muito encorajadores e positivos) baseia-se neste jogo de opostos, bem vincados, para introduzir paisagens e realidades geográficas muito variadas, a partir de uma narrativa.

Qualquer narrativa possui um espaço físico, a partir do qual podemos apresentar às crianças o seu oposto e, indo ainda mais longe, outros opostos. A partir daí, podemos recontar a história nessas novas paisagens, provocando curiosidade e investigação sobre outras paisagens animais, populações, hábitos e formas de vida, etc…

Exemplificando como uma atividade concreta e já posta em prática, em contexto de jardim-de-infância, com um grupo de crianças entre os 4 e os 5 anos, uma educadora partiu da história, mais do que conhecida ,“ O Capuchinho Vermelho”.

A ação passa-se numa floresta com uma menina que vestia uma capa vermelha; um possível oposto de floresta, e que foi apresentado, é um deserto. A partir daqui foram apresentados dois tipos de desertos – o quente e o frio - com recurso a imagens. Nestas imagens foram apresentadas fauna, flora, populações e habitações típicas destes espaços e foram exploradas, pelas crianças, para tomarem conhecimento de outras realidades opostas à apresentada na história original.

Posteriormente, em pequenos grupos, foi recontada a história vivida noutro habitat. Num deserto quente,  “O Capuchinho Vermelho” provavelmente não teria uma capa igual, e a flora e fauna desta nova realidade seriam seguramente diferentes. A Avozinha já não viveria numa linda casinha, mas sim num simpático Iglo, ou tenda beduína. O lobo passou a urso polar, no deserto frio, e a uma serpente, no deserto quente (embora em determinados contextos ecológicos também existam lobos. Existem lobos no árctico, ou em determinadas franjas de alguns desertos).

A atividade seguinte foi a elaboração de dioramas (maquetas) com os animais, plantas e habitações. Numa folha de cartolina, apareceram palmeiras, cobras, areia e tendas; noutra, “neve”, iglos, ursos polares recortados e pintados pelas crianças; numa terceira, construiu-se a floresta do capuchinho original.

Finalmente, cada grupo contou a sua “nova” história aos restantes, utilizando como suporte o diorama por eles elaborado.

Durante esta semana as crianças ouviram e recontaram histórias (Língua Portuguesa), dramatizaram-nas (Expressão Corporal), desenharam e pintaram (Expressão Plástica), investigaram aspetos ligados às ciências naturais e geográficas (Conhecimento do Mundo) e, fundamentalmente, adquiriram novos conhecimentos, de forma lúdica e divertida.

Toda esta atividade foi conseguida a partir de uma história, do seu contexto geográfico e da exploração de opostos bem vincados, que permitiram o conhecimento de novas realidades humanas e físicas.

Este é apenas um exemplo, a partir de uma narrativa muito popular; no entanto, qualquer narrativa é passível de se adequar à introdução, no sistema de opostos binários, de conceitos geográficos no pré-escolar.

Montanha/planície, mar/terra, terra/ar, ilha/continente, rios/oceanos, frio/calor, paisagem humanizada/paisagem natural, campo/cidade, … são incontáveis os contextos opostos que nos são proporcionados por uma pequena narrativa, que vai de encontro ao mundo imaginário das crianças, das suas representações, ao desejo de fantasia, que está estruturada de acordo com o seu universo.

O essencial deste texto pretende dar resposta a uma dúvida, que me tem sido posta, reiteradamente, por vários futuros profissionais e profissionais de pré-escolar: É possível introduzir conceitos geográficos no pré-escolar, de forma eficaz?

A resposta é claramente afirmativa. Muitas outras formas são passíveis de cumprir a mesma função. Ficará para outra oportunidade. Porém, o esquema de opostos bem marcados a partir de narrativas revela-se fácil, adequado e sem necessitar de grandes recursos. Esta forma de ver o mundo “a preto e branco” não é exclusiva das crianças. Atentem na estrutura de muitos filmes, onde o bem e o mal não oferecem tonalidades cinzentas, ou dúvidas. Aos bons, tudo é justificado e os meios parecem sempre justificar os fins. Aos maus da fita, só lhes é permitida uma conduta – a negativa. Basta adaptar esta estrutura ao mundo infantil e as crianças passam a manipular conceitos complexos e a valorar as ações, mesmo aquelas que nos parecem demasiado abstratas para o seu nível etário.

Termino com uma chamada de atenção: se, para o pré-escolar, a Geografia pode ser introduzida a “preto e branco”, esta ciência é fortemente colorida e permite todos as nuances. A Geografia é a realidade espacializada.

  

[1] MALHEIROS, Jorge (2011); “O que eu preciso saber sobre Geografia”; Visão, 1 de Setembro de 2011, Lisboa

[2] EGAN, Kieran; Estádios da Compreensão Histórica; ESEP, Portalegre, 1990 (Doc. Policopiado)

[3] EAGAN, Kieran; O Desenvolvimento Educacional; Lisboa, D. Quixote, 1992