PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

 

Conhecimento profissional docente: Contributo para uma reflexão

Rui Trindade[1]
Presidente do CCPFC

É sempre com grande satisfação que aceito estar presente nas iniciativas promovidas pelos CFAE quer estas sejam organizadas a nível local ou regional, quer, como agora, quando se trata de participar na sessão de abertura de mais um Congresso Nacional.

Num tempo em que a reflexão sobre a profissão docente, em Portugal, tende a ser discutida em função, sobretudo, do envelhecimento dos professores no ativo, das suas condições de trabalho, do seu desgaste profissional, do modo como a sua carreira se encontra configurada ou dos expedientes a utilizar para solucionar o problema da falta de professores, é necessário, também, que abordemos a profissão a partir de outros pressupostos, de forma a poder-se discutir-se algo que antecede a discussão sobre os problemas acabados de enunciar e os desafios profissionais do presente: O que significa, hoje, ser professor em Portugal e no mundo em que vivemos?

Com esta proposta não se pretende menorizar os problemas atrás enunciados, até porque somos obrigados a admitir que, atualmente, os professores estão sujeitos a mais exigências do que no passado e que a vida nas escolas, por boas e más razões, se complexificou. Não é de estranhar, por isso, que o desgaste profissional aumente, sobretudo, quando, para um número bastante significativo de docentes, há mais passado do que futuro profissional e a disponibilidade para enfrentar os mais diferentes tipos de desafios profissionais tende a diminuir.

Se é necessário reconhecer esta dimensão da atividade profissional docente, é necessário, no entanto, discutir, se a desilusão de muitos professores pode ser explicada, apenas, em função do cansaço acumulado por anos e anos de trabalho e, por isso, se não somos obrigados a perspetivar um tal cansaço em função de outras causas.

Na leitura que propomos sobre o mal-estar docente, e não descartando a possibilidade deste mal-estar poder ser resultado de políticas de desinvestimento na carreira ou de modalidades de gestão e administração das escolas que menorizam a inteligência e o protagonismo docentes, defendemos que é necessário, no entanto, equacionar esse mal-estar a partir do modo como os professores percecionam e executam o seu trabalho e vão vivendo a profissão. Na nossa perspetiva, necessitamos de urgentemente, mas sem pressa, discutir o que hoje significa ser professor e, especificamente, indagar qual é o tipo de conhecimento profissional que permite que alguém possa ser ou vir a ser professor.

 O conhecimento profissional docente como objeto de reflexão

 Tenho consciência que há várias maneiras de participar numa tal discussão, dado que o modo como se define o que é ser professor, e qual o conhecimento profissional que habilita para o ser, depende do modo como se enfrentam duas questões complementares: (i) quais as finalidades da Escola? e (ii) que paradigma curricular e pedagógico é congruente com as finalidades enunciadas?

É a partir das diferentes formas de responder a estas duas questões que se explica que, para alguns, não faça sentido falar de transformação da profissão docente nem de mudanças ao nível do conhecimento profissional dos professores, defendendo-se, antes, que o que é necessário é restabelecer a autoridade docente, alegadamente perdida e reposicionar a centralidade da sua presença e do seu discurso nas salas de aula (Ribeiro, 2003). Numa outra abordagem, defende-se que os professores têm de se assumir, pelo contrário, como facilitadores, dado que a Escola se deve preocupar, sobretudo, com a necessidade de promover o desenvolvimento cognitivo e socioemocional dos alunos, de forma a que estes, num mundo em que o conhecimento se encontra disponível no espaço digital e é objeto de transformações rápidas e constantes, sejam capazes de «aprender a aprender», de aprender a processar informação e de aprender a desenvolver as estratégias adequadas para resolverem problemas ou para se apropriarem da informação que possam necessitar (Trindade & Cosme, 2010). 

Estas são perspetivas das quais me distancio porque defendo, ao contrário da primeira perspetiva, a perspetiva instrucionista, que nem se pode ignorar os alunos como protagonistas educativos, nem defender que é a sua ignorância e incompetência que justifica a sua matrícula nas escolas. Também ao contrário da segunda perspetiva, recuso que se possa subestimar o património de informações, instrumentos, procedimentos e atitudes culturalmente validado (idem) como fator educativo incontornável, porque recuso que este património seja entendido como um obstáculo educativo que tende a impedir o desenvolvimento pessoal e social dos alunos.

Na perspetiva que defendo, o desafio maior das escolas contemporâneas consiste em afirmarem-se como espaços de promoção e desenvolvimento das literacias dos seus alunos (literacia linguística, literacia matemática, literacia científica, literacia estética, literacia tecnológica, etc.), de forma a que estes se vão tornando progressivamente mais capazes de interpretar, avaliar e utilizar os recursos concetuais e heurísticos, relacionados com as diversas áreas do saber, de modo esclarecido e pertinente, permitindo-lhes, assim, refletir, argumentar ou agir de forma fundamentada, exigente e credível (Benavente et al.,1996; Sjöström, & Eilks, 2018; Costa, Ferreira e Loureiro, 2020). Uma possibilidade que, por um lado, resulta e tem em conta a necessidade de contextualizar culturalmente o protagonismo intelectual e social dos alunos e, por outro, permite que as escolas possam contribuir para o seu desenvolvimento cognitivo, socioemocional e ético, entendendo-o como uma variável subordinada do projeto de desenvolvimento das literacias que, enquanto espaços de socialização cultural, deverão, na minha perspetiva, promover como o seu objetivo prioritário.

Assim, é de acordo com os compromissos acabados de explicitar que as escolas se constituem como espaços de afirmação e de desenvolvimento de cidadania, ao ponto de Nóvoa (2022) defender que a “missão de um professor de Matemática não é apenas ensinar Matemática, é formar um aluno através da Matemática” (p. 84). Isto significa que um professor não tem de abdicar da Matemática ou de qualquer outra área do saber para contribuir para a educação dos seus alunos. Pelo contrário, tem de compreender, em primeiro lugar, que a(s) disciplina(s) que leciona constituem a melhor oportunidade que dispõem para promover a inteligência e a humanidade dos alunos com os quais trabalham, o que depende, acima de tudo, do modo como se concebe e dinamiza a relação entre alunos e o património culturalmente validado que diz respeito àquela(s) disciplina(s), em função do qual, afinal, se relacionam com os seus pares, as pessoas e o mundo que é o seu.

Deste modo quando defendo a necessidade de reinventar a profissão docente e de repensar, por isso, o conhecimento profissional dos professores, faço-o a partir de três pressupostos nucleares. O primeiro tem a ver com o estatuto que atribuo aos alunos, entendendo-os como pessoas a desafiar, a partir daquilo que sabem e do que são, não os vendo, por isso, nem como seres humanos à-espera-de-o-ser nem como seres humanos  culturalmente autossuficientes. O segundo pressuposto relaciona-se com o estatuto do património cultural enquanto elemento nuclear da relação que os alunos estabelecem e são estimulados a estabelecer com o mesmo, tendo em conta que é a apropriação de um tal património e o modo como a mesma se dinamiza que poderá garantir que a Escola se assuma como um espaço interessado no desenvolvimento pessoal e social dos alunos, no momento em que investe de forma decisiva no seu empoderamento cultural (Trindade, 2021). O terceiro pressuposto diz respeito ao estatuto e à função dos professores. Estes deixam de ser percecionados como instrutores ou como facilitadores para se assumirem, antes, como interlocutores qualificados (Cosme, 2009; Trindade & Cosme, 2010), no momento em que (i) assumem de forma explícita intenções curriculares e pedagógicas prévias que gerem de forma contextualizada, culturalmente desafiante e o mais participada possível; (ii) se envolvem na criação de ambientes educativos congruentes com os propósitos de uma escola inclusiva, culturalmente significativa e humanamente empoderadora; (iii) se mostram disponíveis para participar em situações de apoio deliberado e contingente, quando isso é necessário e (iv) promovem a auto e a heterorreflexão como condição potenciadora de aprendizagens e do desenvolvimento pessoal e social dos seus alunos.

Como interlocutores qualificados, o principal desafio com que se confrontam os docentes passa, em larga medida, por responder à questão: «Como se promove a relação dos alunos com o património culturalmente validado, de forma a que os alunos se apropriem deste património (quadros concetuais, instrumentos, modos de pensar e de agir, etc.), e possam viver, concomitantemente, uma experiência de desenvolvimento pessoal e social?». Uma questão que, por sua vez, obriga os professores a enfrentar questões mais específicas como aquelas que se passam a enunciar:

a) Que obstáculos epistemológicos, concetuais e instrumentais é que são expectáveis?

b) Com que desafios culturais e exigências pessoais é que os posso confrontar? Posso fazê-lo?

c) Que recursos, estratégias e metodologias poderão contribuir para se criar uma relação produtiva?

d) Como avaliar o trabalho realizado e promover a participação dos alunos neste âmbito?

 Perante as questões propostas, compreende-se melhor que, do ponto de vista do conhecimento profissional dos docentes, a sua capacidade de deliberação curricular depende da necessidade de se reconhecer a centralidade da reflexão epistemológica como componente fundamental subjacente à manifestação de uma tal capacidade. O que se defende é que os professores, para decidirem o que vão fazer e propor aos alunos, têm de assumir uma consciência não-ingénua das particularidades concetuais e heurísticas do conhecimento académico e científico que diz respeito à sua área de saber, o que os obriga a serem capazes de lidar com as seguintes questões de natureza concetual e heurística:

a) Qual o objeto de estudo da área de saber X ou Y?

b) Quais os seus domínios estruturantes? Que relações estabelecem entre si?

c) Quais os conceitos nucleares que se relacionam com cada um desses domínios? Como emergiram, como se desenvolveram e afirmaram? Que razões poderão explicar a sua emergência e afirmação?

d) Quais os obstáculos epistemológicos que é necessário ter em conta, quando se abordam esses conceitos? Que condições é necessário respeitar para que os alunos possam enfrentar esses obstáculos?

e) Como se raciocina na área de saber X ou Y? Como se infere? Como se generaliza?

f)  Que instrumentos se utilizam para numa dessas áreas lermos, interpretarmos e interpelarmos a realidade que se estuda?

g) Como se age? Quais os procedimentos específicos que caraterizam essas áreas de saber?

h) Que transformações substanciais foram afetando as áreas do saber quanto aos instrumentos e procedimentos que se foram criando no seu seio?

Se a capacidade de produzir uma reflexão sobre estas questões, e de utilizar os resultados da mesma, tem sido valorizada até este momento como instrumento de deliberação curricular, importa valorizá-la, também, como instrumento de deliberação pedagógica. É que sem se compreenderem as particularidades concetuais e heurísticas de uma área de saber, como é possível: (i) definir se os desafios pessoais e intelectuais com que se confrontam os alunos nas escolas, bem como as estratégias e os métodos a adotar, são adequados? (ii) propor recursos congruentes que eles poderão utilizar para responder àqueles desafios? (iii) identificar as dificuldades e os equívocos que se poderão gerar durante um tal processo, bem como as estratégias de tutoria, monitorização e apoio? e (iv) conceber e operacionalizar o processo de avaliação (critérios, instrumentos, feedback e momentos de avaliação)?

O que defendo é que, do ponto de vista da reflexão sobre o conhecimento profissional dos professores, as implicações formativas desta abordagem não poderão ser negligenciadas quer do ponto do estatuto do conhecimento científico e académico, quer do ponto de vista dos conhecimentos curriculares e pedagógicos, quer, ainda, do ponto de vista da articulação que se pode estabelecer entre ambos.

Em termos do primeiro tipo de conhecimento enunciado, constata-se que é necessário começar por distinguir a formação académica e científica de um professor da formação dos especialistas ou de outros profissionais que possam operar em áreas congéneres. É que, como refere Nóvoa (2022), o “professor precisa de ter um conhecimento mais orgânico, histórico, contextualizado e abrangente da disciplina que vai ensinar” (p. 83), o que é congruente com a reflexão que propus sobre a necessidade do professor se assumir como um interlocutor qualificado porque, entre outras coisas, tem de ser capaz de assumir uma consciência explícita das propriedades epistemológicas dos conhecimentos que dizem respeito à(s) área(s) que leciona, sem a qual tenderá a gerir às cegas a relação que estabelece e anima entre os seus alunos e o universo concetual e heurístico que carateriza e configura essa(s) área(s).

Ao nível dos conhecimentos curriculares e pedagógicos seguimos de perto a reflexão de Schulman (1987) que, não deixando de valorizar a necessidade dos professores se apropriarem de conhecimentos que lhes permitam compreender de forma mais esclarecida a dimensão política e histórica da Escola e do modelo de educação escolar, de refletir de forma mais sustentada sobre algumas das singularidades das crianças, dos adolescentes e dos jovens, de raciocinar e agir quer a partir dos conhecimentos sobre gestão e organização curricular e pedagógica, quer a partir dos conhecimentos sobre organização e cultura escolar e, finalmente, tomar decisões de natureza metodológica e didática, valoriza, igualmente, o modo como através destes diferentes tipos de conhecimentos os professores se mostram mais capacitados para dominarem o que o mesmo autor designa por “conhecimento pedagógica do conteúdo” (idem, p. 206). O tipo de conhecimento que, na sua perspetiva, permite identificar, de forma definitiva, o que se designa por conhecimento profissional docente.

Perante esta abordagem, considera-se que o conhecimento que confere uma identidade à profissão docente é um conhecimento que resulta da natureza e qualidade da articulação entre os conhecimentos científicos e académicos e os conhecimentos curriculares e pedagógicos. Não se pretendendo contestar esta perspetiva, é necessário ter em conta, todavia, a reflexão proposta por Nóvoa (2022), a partir da qual se compreende melhor que uma tal abordagem não é suficiente para compreendermos a amplitude do conhecimento profissional docente, porque não tem em conta a participação dos professores na sua recriação e construção. Isto é, segundo Nóvoa (idem) tem de se ter em conta o modo como os docentes, enquanto membros de um coletivo profissional, integram o conhecimento que suporta as suas decisões e ações no âmbito da reflexão que produzem sobre as experiências profissionais que vivenciam quotidianamente.

Em conclusão, sendo decisivo valorizarmos a etapa da formação inicial que põe ao dispor dos candidatos a professores o saber acumulado e validado que os vai autorizar a exercerem a atividade docente, é necessário valorizar-se, igualmente, o modo como a apropriação desse saber acontece, de forma a que as práticas de formação não traiam os pressupostos e as propostas que se difundem. É necessário, também, que entendamos que estamos perante um processo inacabado, já que a relação dos professores com o conhecimento profissional que lhes diz respeito os obriga, ao longo da sua vida como docentes, a participar na sua recriação e desenvolvimento, à medida em que, justamente, aprendem a pensar e a agir como profissionais, de forma eticamente comprometida (idem).

Referências bibliográficas

Benavente, Ana; Rosa, Alexandre; Costa, António Firmino; & Ávila, Patrícia (1996). A literacia em Portugal: Resultados de uma pesquisa extensiva e monográfica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian / Conselho Nacional de Educação

Cosme, Ariana (2009). Ser professor: A ação docente como uma ação de interlocução qualificada. Porto: LivPsic.

Costa, António Manuel; Ferreira, Maria Eduarda; Loureiro, Manuel Joaquim da Silva (2020). Scientific Literacy: The conceptual framework prevailing over the first decade of the twenty-first century. Revista Colombiana de Educación (18), 195-228.

Nóvoa, António (2022). Escola e professores: Proteger, transformar, valorizar. Salvador (BR): SEC/IAT.

Ribeiro, Gabriel M. (2003). A pedagogia da avestruz: Testemunho de um professor. Lisboa: Gradiva.

Schulman, Lee (1987). Knowledge and Teaching Foundations of the New Reform. Harvard Educational Review, v. 57, n. 1, p. 1-22.

Sjöström, Jesper; & Eilks, Ingo (2018). Reconsidering different visions of Scientific Literacy and Science of Education on the concept of Bildung. In Dori, Yehudit J.; Zemira, R.; & Baker, Dale, R. (eds.), Cognition, Metacognition, and Culture in STEM: Learning, Teaching and Assessment. Weston, MA, USA: Springer.

Trindade, Rui; Cosme, Ariana (2010). Educar e aprender na Escola: Questões, desafios e respostas pedagógicas. Gaia: Fundação Manuel Leão.

Trindade, Rui (2021). O contributo da Psicologia da Educação e o desenvolvimento de projetos de formação de profissionais da Educação: Exigências e possibilidades. Porto: Mais leituras.


[1] Presidente do Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua (CCPFC)