PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

 

É verdade professora, desculpe

Antónia Serra
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Passados que estão dois anos sobre o momento da minha aposentação, apaguei quase tudo o que foi desagradável e guardei no coração todos os momentos que me fizeram feliz nestes 46 anos de uma vida intensa e muito gratificante.

Julgo que, desde que me recordo de mim, sempre fiz saber que queria ser professora. Essa era a minha vocação, essa seria a minha missão profissional. Considero, que para reforçar esta minha forte convicção profissional contribuiu, em muito, a minha professora primária. Não sabendo muito bem explicar na altura porquê, ela correspondia aquilo que eu considerava ser uma boa professora e eu também queria ser assim.

 Talvez por isso, no momento em que, mesmo antes do Natal de 1974, quando ainda era estudante universitária me contactaram para aceitar um horário, na escola de Montemor- o - Novo, que estava vago e para o qual não encontravam professor mais habilitado, não hesitei em aceitar esse desafio. Ia assim antecipar esse meu sonho. Assim, no dia seis de janeiro, lá estava eu, no ponto de partida para essa promissora e tão desejada viagem de 46 anos, sem qualquer interrupção.

Tanto havia para contar sobre esta jornada, que ao contrário do que seria a intenção inicial, foi repartida entre a sala de aula e a administração educacional, com larga vantagem para a segunda por onde andei 34 anos e na qual me realizei igualmente.

É interessante reconhecer que quando me proponho falar de um episódio da minha vida profissional, o meu arquivo de vida traz-me à memória, como é óbvio, imensos momentos marcantes, mas de todos vou destacar um que surge na linha da frente.

Estávamos no início dos anos 2000 e eis-me, por opção minha, de regresso à Escola Conde de Vilalva, depois de uma permanência de quase 20 anos na Administração Educacional. Tenho a ideia que para alguns e até talvez para mim própria colocava-se a dúvida: será que ainda sabe dar aulas?

Talvez para o provar, em primeiro lugar, a mim própria, quando a Direção da Escola me interrogou sobre as minhas preferências para a constituição do meu horário, para que fossem tidas em atenção caso fosse possível, respondi sem hesitar: quero a turma considerada a mais difícil em termos de motivação, disciplina e desempenho.

Recebi então uma turma de “Percursos Pedagógicos Alternativos”, com 20 adolescentes, todos eles feridos na sua autoestima por apresentarem alguma dificuldade de se adaptarem à norma e ao ritmo comum de aprendizagem. De bom grado aceitei este desafio.

 Na sua maioria estes alunos eram provenientes de famílias marcadas por vários problemas de cariz social: desemprego, fragilidade económica, consumo de álcool e outros. Famílias onde a violência era considerada como algo normal, famílias que não acreditavam na escola e muito menos no investimento escolar nos seus filhos, famílias que há muito tinham deixado de contribuir para um ambiente positivo, tinham deixado de cumprir a sua função enquanto estrutura e referência para os seus jovens e como tal estes tinham ficado à deriva, na sua insegurança, limitados no seu crescimento emocional e no desenvolvimento harmonioso da sua personalidade. É um facto que todo este contexto não é de forma alguma coisa desprezível.

O Conselho de Turma foi escolhido com todo o cuidado, privilegiando quem manifestou disponibilidade e quem acreditou poder encontrar aqui algumas veredas de liberdade pedagógica que permitissem implementar medidas de inclusão social e de promoção de sucesso educativo e pessoal para estes jovens. Tínhamos consciência que a tarefa não era fácil e ia exigir muita dedicação, inovação, disponibilidade, espírito de equipa. Também sabíamos que os sentimentos nunca iriam adormecer e que o estímulo seria constante.

Reuníamos semanalmente para avaliar e planear os passos seguintes. A sala de aula era sempre a mesma e no armário ficava todo o material necessário ao trabalho em sala, para não corrermos o risco de cadernos e livros ficarem perdidos algures. Para além disso no mesmo armário cada um tinha um caderno pessoal onde escrevia quando necessitasse o seu pensamento, frustrações e expectativas, tudo o que lhe apoquentava a alma e não conseguia ainda partilhar, cara a cara, com um professor. Normalmente o confidente era aquele professor com quem se sentia mais à vontade, ou aquele que estava mais próximo quando a dor de alma se tornava insuportável.

Haviam alturas em que a indisciplina e a falta de empenho no trabalho se instalavam e claro que os professores tinham os seus mecanismos de controlo desses momentos difíceis.

Eu, por exemplo, jogava com a hora da minha aula (final da manhã) e com a fome devoradora que assalta jovens em crescimento, à hora do almoço. A regra era a seguinte: 10 minutos antes do toque de saída a aula terminava. O material escolar era guardado no armário e de seguida passávamos à avaliação de cada um naquela aula, tendo em conta o empenho e o comportamento. Devo referir que os alunos levavam isto muito a sério e raramente havia discordância entre eles. O melhor classificado saia em primeiro lugar e como tal, levava vantagem no lugar da fila da cantina. Depois saia o número dois e assim sucessivamente até ao último, que tinha sido o menos colaborativo. Um dia, este último lugar coube ao João (não é este o seu verdadeiro nome) e em desespero de causa meteu as mãos por baixo da mesa de trabalho e atirou-a ao ar. Claro que esta atitude valeu-lhe maior atraso na sua chegada à fila. Primeiro teve de colocar a mesa no seu lugar e de seguida sentar-se direito e ouvir o raspanete esperado. À tarde eu tinha no seu caderno pessoal a voz da sua revolta “…a professora foi injusta…”. Encontrámo-nos no corredor ao fim da tarde. Estava sentado num banco à espera da hora do transporte de regresso a casa. Sentei-me ao seu lado e recordei-lhe que a regra era do seu conhecimento, a decisão era da turma e que a atitude dele era reprovável em qualquer situação. Claro que argumentou e por fim combinámos que durante a noite ele iria refletir sobre a situação… Se chegasse à conclusão que eu tinha razão no dia seguinte pedia-me desculpa, se não, ficaria com a razão dele e eu com a minha e não haveria com isso qualquer problema.

No dia seguinte entrámos na aula e cada um tomou o seu lugar. O João sentou-se no seu lugar do lado esquerdo ao fundo da sala. Eu, sentada à secretária abri o sumário no Livro de Ponto. Nisto, vejo o João levantar-se e de cabeça baixa, dirigir-se na minha direção. Não me olhou de frente, passou para trás de mim, e pondo-me as mãos, uma em cada ombro soltou um sussurro: “ é verdade professora, desculpe”. Pus-me de pé, virei-me para ele e dei-lhe um abraço sentido, com sabor a um dia de sol.