PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

Sai uma história quentinha para… as carteiras lá do fundo

Miguel Castro
Instituto Politécnico de Portalegre

Quero começar por fazer uma afirmação que me parece adequada ao texto que poderão, se a paciência for para convosco benevolente, ler de seguida – gosto da PROFFORMA! É possível publicar textos (de acordo com os critérios editoriais) que apenas se baseiam numa das atividades em que nós, professores, somos especialistas – o desabafo, a reflexão ou a crítica. Na PROFFORMA não temos” revisão cega por pares”, nem é obrigatório fazer um forte exercício de fundamentação teórica de tudo o que se escreve. Não que os textos não tenham qualidade (a modéstia obriga-me a dizê-lo!) - têm! São fruto de profissionais que têm direito a ter uma opinião, ou uma boa ideia, sem que tenham recorrido a textos e/ou livros de referência; aqui encontram esse espaço de livre expressão. Ainda que as revistas científicas tenham o seu lugar e sejam importantes para a atividade na área, não são o espaço onde se possa apresentar uma reflexão despreocupada, como quando “falamos” para nós próprios, com colegas que nos entendem, ou numa boa discussão com amigos. É neste registo que pretendo escrever algumas reflexões/desabafos, fruto dos anos que “dou aulas” (cada vez esta afirmação é mais verdade, pois o preço da hora de trabalho dos professores tem vindo a cair).

As sociedades ocidentais têm vindo progressivamente a ficar cada vez mais dependentes de uma cultura audiovisual. Não faço juízos de valor acerca desta afirmação, apenas constato. Vemos televisão, a música é ouvida com os respetivos videoclips e na internet a leitura é muitas vezes completada com interação visual e auditiva. Não que eu seja contra. Sou um consumidor comum de audiovisuais, nem tenho arrogância para com aqueles que veem televisão e as leituras se ficam pela “Maria” ou a “Bola”. Aliás, uma das razões pelas quais este tipo de publicações prendem os leitores é a forma como contam uma história.

Contar histórias é sem dúvida uma das formas mais elementares de transmissão de cultura e, concomitantemente, permite ao ouvinte apropriar-se da narrativa, expandi-la e vivê-la. Existe uma identificação do narrador com a narrativa e desta com o ouvinte. A história, desde que bem contada, de forma interessante e enigmática, prende, agarra e leva o ouvinte a envolver-se. Torna-se viciante. Para além destas qualidades, pode contribuir para educar, criar identidades individuais ou coletivas, transmitir mensagens, mais ou menos explícitas, criar cultura e, não esquecer, passar conhecimento científico. Uma verdadeira escola. Sempre à mão, fácil de transportar, muito eficiente, serve para qualquer situação - desde o maior requinte e distinção, ao mais popular e acessível - é barata e capta a atenção do mais difícil dos públicos.

Nas culturas de tradição oral, a história e identidade de um povo apenas subsistem a partir da transmissão verbal dos conhecimentos. As novas gerações aprendem sobre o seu passado, tradições, comportamentos e formas de sobrevivência, a partir das narrativas dos seus líderes. Ao ler o “Papalagui”[1] ou “Gerónimo por ele mesmo”[2], ficamos com a sensação de que a narrativa serve propósitos mais vastos do que contar uma história; no entanto, a gestão da narrativa, o ritmo, a escolha das palavras, as estratégias de manter interessado quem ouve, do início ao clímax, são “artes” que devemos explorar, caso pretendamos utilizar esta metodologia como estratégia didática. É uma técnica que se aplica a qualquer nível etário, desde o pré-escolar ao ensino superior. A escolha da “história”, bem como a forma de a contar são a chave para uma mensagem eficazmente transmitida.

Kieran Egan[3] explora, em vários livros, a técnica da narrativa e expõe a sua forma e estrutura dependendo da classe etária, das suas características e estádio de desenvolvimento cognitivo. Mas a capacidade de prender audiências vai mais além - depende também de conseguir tornar interessante e cativante algo que pode parecer, aparentemente, desinteressante ou aborrecido.

O desinteressante e aborrecido carateriza a minha relação de 12 anos com a matemática. Foi sempre uma relação honesta. Não gostava de matemática e o sentimento era recíproco.

Lembro-me de ter perguntado a um professor para que servia aquela fórmula que se assemelhava a uma previsão astrológica - daquelas que mostram um mapa das constelações que só pode ser interpretado por alguém com um raciocínio demasiado oculto para o poder expressar. A resposta foi rápida e atingiu-me de forma a me fazer tomar uma decisão: não pretendo ter nada a ver com matemática! “Serve para fazer foguetões”! A formação e reprodução dos musgos interessava-me pouco, mas mesmo assim, deixava a léguas a vontade de “fazer foguetões”.

Hoje penso que fui injusto. Devemos muito aos foguetões. Para os Geógrafos, conseguir olhar a Terra de alguma distância é, e sempre foi, magnífico. Devemos aos foguetões muito da nossa qualidade de vida. Toda a ciência investida nesses artefactos é, sem dúvida, compensatória, mas na altura em que me foi dada a resposta, ninguém me contou uma boa história sobre a importância de construir foguetões.  

O episódio com a matemática já é passado, mas alguns professores de quem me lembro (poucos, é certo) que conseguiram alterar a minha relação com a matemática, e com outras matérias, alcançaram-no com uma história. Prenderam-me a atenção e aguçaram-me a curiosidade para ir mais longe e querer estudar mais do que os “objetivos mínimos”. Equação de Schrödinger, Paradoxo de Zenão, Universos paralelos, Relatividade ou mecânica quântica foram-me apresentados durante a minha passagem de 12 anos pelo sistema educativo, agora obrigatório. Fiz as pazes com a matemática e com muitas outras matérias quando encontrei “bons contadores de histórias”. Eram emocionantes e nunca me revelavam o fim… apenas o afloravam e deixavam “água na boca” para o grande final.

Ter um professor que me conta a história da origem da vida, que incentiva discussões bem acesas sobre os temas (entre todos, “profes” e alunos), embora nunca chegando a novas conclusões, visto o fim da história já estar bem sustentado. A função do professor era deixar a narrativa, levando-nos a um ponto em que nos satisfizéssemos com as nossas pequenas vitórias sobre o fim da história. Discutir Darwin e quase a chegar “a vias de facto” com colegas e professor à mistura, fez-me ler a “Origem das Espécies” e comprar, com os parcos recursos de estudante, que também gostava de gastar dinheiro noutras e muito aliciantes alternativas, livros sobre Darwin e darwinismo (que continuam a fascinar-me).

Mais tarde, encontrei alguns “contadores de histórias”, que ainda hoje me acompanham: Stephen J. Gould; Albert Einstein e Carl Sagan. Mostraram-me como pode ser aliciante perceber que “Alice nos País das Maravilhas” pode ser muito mais do que um filme da Disney e ficar, ainda hoje, fascinado com o gato e o livro de Lewis Carrol. Einstein e Leopold Infeld levaram-me a compreender a relatividade e a mecânica quântica, sem uma única equação ou número (bom… as páginas tinham números). Quando percebi, passei então a compreender a matemática (ainda de forma relativamente superficial e esquemática) por detrás destas teorias, e a minha relação com esta matéria pacificou-se.

O mesmo se passou com a História. A “História começa na Suméria”[4] conta-nos como a nossa sociedade está ainda tão perto do início daquilo a que se convencionou apelidar de civilização. As histórias da História da Ciência, contadas por Sagan ou Gould, levam-nos a ter vontade de conhecer mais, de saber mais, de vibrar com a pesquisa.

Um professor de Geografia, de voz roufenha, debitava a seguinte informação: Eratóstenes viveu entre o século terceiro e segundo antes de Cristo e é conhecido por ter medido o perímetro da Terra e ter sido um grande geógrafo. Nunca mais me lembrei deste nome, mas quando - penso que em 1985 - comprei o “Cosmos”[5] , de Sagan, e ele contou a história de Eratóstenes, fiquei fascinado e quis conhecer mais sobre esta personagem que marcou os primórdios da Geografia.

Desculpem esta romagem de saudade a alguns tempos passados da minha história académica, mas nunca fui um aluno fácil. Não me portava mal, mas era algo impertinente e por vezes agia com uma ironia, que roçava a arrogância e misturava algum desprezo pelo trabalho dos “pobres” dos meus professores.

O que pretendo mesmo salientar é a importância daqueles que me conseguiram prender a partir de histórias bem contadas - daí o título: Sai uma história… para as mesas de trás. As mesas de trás são a representação dos alunos menos interessados, difíceis de trazer para a aula e para o conhecimento.

Se desde sempre o homem utilizou as histórias para transmitir eficazmente conhecimentos de toda a ordem, porque não tornar a utilizar este instrumento para as práticas pedagógicas? Continuamos a apresentar a Equação de Schrödinger desta forma:  H(t) \left| \psi (t) \right\rangle = i \hbar \frac{d} {dt} \left| \psi (t) \right\rangle. Aprendemos a resolvê-la e a manipulá-la, tornando-a mais simples numa definição de energia mecânica (espero sinceramente não estar a escrever asneiras), mas ninguém explora a história do pobre gato, contada pelo próprio Schrödinger. Está vivo? Está morto? Mortovivo? As histórias e as implicações que daí se podem discutir, sem recorrer aos números, são igualmente um exercício mental muito intenso, que pode prender os alunos às aulas; depois claro que vão estar mais predispostos a perceber e a trabalhar a matemática.(Quem nunca tenha ouvido falar na equação de Schrödinger, está sempre a tempo de pesquisar, mesmo na pouco fiável wikipédia!). No geral, o que interessa é que saibam resolver a equação e que passem no exame. Se deixarmos as histórias fora da escola, corremos o risco de ter alunos que estão quase num dilema quântico de Schrödinger. Estão dentro das escolas e são alunos, mas a sua mente está noutro lado e não aprendem coisa alguma - serão alunos ou não-alunos? Teremos que, tal como na história do gato, abrir a caixa ou contentarmo-nos com a incerteza. Neste último caso, prefiro abrir a caixa com uma boa história e ficar com alunos dentro de uma escola que permite, a partir de narrativas várias, que se goste de aprender, estudar e investigar. Vou abrir um pequeno parenteses para pedir desculpa aos amantes dos animais, nos quais me incluo, mas o exemplo do gato foi dado pelo próprio investigador e de uma forma bastante mais elegante daquela que foi publicada num manual escolar há bem pouco tempo. O gato de Schrödinger não põe em causa a dignidade e tratamento dado aos pequenos felinos.

Não está na moda que o processo ensino/aprendizagem deve ajudar os alunos a construir o seu próprio conhecimento? Aliciemo-los com uma boa história sobre um qualquer tema, de uma qualquer matéria e a hipótese de termos alunos interessados em descobrir e aprender por conta própria arrisca-se a crescer de forma estatisticamente muito significativa (já estamos a servir-nos da matemática e da física). Na parte que me toca, não tenho medo de “perder aulas” a contar histórias, elas são compensadas pelo interesse dos alunos na Geografia.


 

[1] Tuiavii (s/d). O Papalagui. Antígona. (11ª ed. 1989). Lisboa

[2] Gerónimo (s/d). Gerónimo por ele próprio. (3ª Ed, 1999).Antígona. Lisboa

[3] Egan, Kieran. (1990). Estádios da Compreensão Histórica. ESEP. Portalegre. (1992). O desenvolvimento educacional. D. Quixote. Lisboa. (1994). O Uso da Narrativa como Técnica de Ensino. D. Quixote. Lisboa.

[4] Kramer, Samuel Noah (1975). A história começa na Suméria. Círculo de Leitores. Lisboa

[5] Sagan, Carl (1985). Cosmos. Gradiva. Lisboa.