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Editorial

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Educação e Ensino - Notas sobre Manuais Escolares
um instrumento ideológico ao serviço do Estado Novo

Francisco Simão
CEFOPNA

Presença habitual na Escola, e necessariamente, na sala de aula, o Manual Escolar tem, tal como a sociedade, sofrido alterações ao longo dos tempos.  Apaixonado que sou pelo ensino, tenho colecionado, ao longo dos já muitos anos de profissionalidade docente, manuais escolares que, referentes ao 1º Ciclo, acompanharam gerações. Assim, o que proponho é, numa leitura solta, um olhar crítico sobre os manuais pelos quais, com certeza, muitos de nós aprendemos.

Naturalmente que os métodos mais divulgados no Estado Novo suportam a organização da informação nos livros, de forma enciclopédica e deliberadamente ideológica e consubstanciam essa mesma informação nos testes, nos exercícios e nos exames; isto é, este modelo está naturalmente configurado e estruturado para transmitir a informação, embora necessite um professor “configurado” de forma adequada para o aplicar, já que ele é o principal protagonista, retirando ao aluno, num sentido mais ou menos perverso, o espaço de construção do ser social, afectivo e moral, deixando a “construção das aprendizagens” excessivamente em causa.

Pois é, naturalmente somos levados nesta sequência de pensamento, embora, depois de alguma reflexão, sejamos levados a pensar que… talvez não seja bem assim! Afinal o instrumento é apenas o meio, não é o motor da acção. Isto é, o problema não é o modelo, mas sim a intenção do mentor e a configuração dos conteúdos. Por isso mesmo, o Estado Novo teve uma deliberada e nada inocente preocupação com a “configuração” do professor a quem confiou a tarefa da instrução e reprodução social.

Enquadramento da Questão

1. A Escola, tal como a concebemos hoje, é uma “invenção” recente, e desde que foi “inventada” teve sempre um papel essencialmente reprodutor de quem antecede quem a frequenta ou, de forma mais perversa, quem é dominante em termos de poder.

Sem ir mais longe, o Estado Novo sabia-o muito bem - aprendeu-o com a Itália fascista de Mussolini, de quem até os manuais escolares copiou. E a História dá-nos exemplos que bastem, de como a Escola serviu o poder reinante, político e económico, ao logo dos tempos. Afinal, não foi isso mesmo que a Igreja católica e romana fez ao logo de centenas de anos nas escolas que criou à sombra das igrejas e dos mosteiros? E não foi a única confissão religiosa a faze-lo, pois, de uma maneira geral, todas o fizeram, desde a mais remota Antiguidade: empenharam-se em reproduzir, propagar e conservar a cultura e o saber admitidos como corretos, aceitáveis e desejáveis; em produzir “operários” competentes para assegurar os processos de produção económica; alunos formatados para serem cidadãos cumpridores, dóceis e obedientes.

Poucos foram os exemplos de sociedades que promoveram o livre-pensamento, o exercício do livre arbítrio, a reflexão crítica sobre a vida e as organizações sociais e a capacidade de intervenção democrática nos processos políticos e de decisão sobre a região, a província ou sobre o país.

E aqui, então, começamos a pensar sobre qual será, realmente, o papel da Escola?... Qual o papel que ela tem na nossa sociedade actual? Qual o que achamos que deve ter num processo educativo integrado e compreensivo, holístico e tendente, não só a formar o cidadão de princípios, valores e moral democráticos e humanistas, mas também a transmitir-lhe a capacidade de pensar, raciocinar, de agir criticamente sobre o quotidiano e os processos, de lhe conferir a capacidade de interagir socialmente, com os seus pares, com os seus próximos, em família, em casal, em sociedade, enquanto pais e enquanto filhos… e, ao mesmo tempo, e sem que isso deixe de ser um processo educativo também, de lhe transmitir o conhecimento acumulado e organizado, que ao longo de gerações, se constitui como o património e o legado de cultura e conhecimento que é preciso preservar, e sobre o qual se constrói a cultura e conhecimento das gerações seguintes. É um equilíbrio e uma tarefa cuja dimensão está realmente muito para além da capacidade da Escola, e que tem necessariamente que integrar outros parceiros neste processo, envolvendo e congregando todos os actores sociais que agem e interagem social e culturalmente num mesmo contexto.

2. Há demasiadas questões que me angustiam como pessoa, como professor, como educador, como homem político – no sentido em que todos somos actores políticos – e que me impelem, de certo modo, pelo menos a sistematizar algumas dúvidas e questões que surgem do nosso quotidiano de educadores, do contexto perturbante do nosso sistema educativo, da forma como os valores – ou não-valores – se organizam e se entranham nas gerações que - ainda que em termos de princípio ou meramente académicas o possamos recusar - estamos a EDUCAR.

E educamos pela ação ou não-ação, enquanto atores participantes num sistema que teima em colidir consigo próprio, num processo reactivo e antagónico, carregado de contradições, que, não deixando de ser dinâmico, também não deixa de nos angustiar!

3.O diagnóstico sobre a situação actual da escola é sombrio. O problema da escola pode ser sintetizado em três facetas: a escola, na configuração histórica que conhecemos (baseada num saber cumulativo e revelado), é obsoleta, padece de um défice de sentido para os que nela trabalham (professores e alunos) e é marcada, ainda, por um défice de legitimidade social, na medida em que faz o contrário do que diz (reproduz e acentua desigualdades, fabrica exclusão relativa).

Não é possível adivinhar, nem prever, o futuro da escola, mas é possível problematizá-lo. Ou seja, é desejável agir estrategicamente, no presente, para que o futuro possa ser o resultado de uma escolha, e não a consequência de um destino. É nessa perspectiva que pode ser fecundo, e pertinente, imaginar uma "outra" escola a partir de uma crítica ao que existe”. (Rui Canário).

Escola e Educação são dois conceitos que, muitas vezes, se confundem no significado. Reduzir a Educação à sua forma escolar é, essencialmente, redutor da própria Educação em si. Pensar a Escola, numa perspetiva histórica, enquanto construção social dos últimos 200 anos, e o carácter hegemónico que alcançou como instituição: parece-me importante um trabalho de reflexão sobre o papel da Escola, enquanto Instituição de Educação (também), enquadrando uma perspectiva histórica do papel e função da Escola, e a forma como, num certo sentido, se pode ser levado a confundir os dois conceitos fundamentais atrás referidos, conduzindo-nos à definição do papel da escola enquanto instituição educativa no plano conceptual do que é um serviço público de educação.

A relação da Escola com a heterogeneidade e com a individualidade, a Escola, segundo modelos orientados para a produtividade ou para a convivencialidade – a Escola como o lugar “onde se é obrigado a ir”, no sentido de regulador social e não mais de factor de promoção social. A escola moderna, de massas, onde se encontram e, muitas vezes, explodem, as tensões sociais e onde a escolarização dos saberes já não parece, de maneira alguma, ser a resposta para uma Educação estruturadora da cidadania e da urbanidade, da funcionalidade técnica e profissional dos conhecimentos e das competências adquiridas e da formação integral do indivíduo.

A relação da Escola com a Comunidade e os outros parceiros educativos, no sentido em que a Educação, não é do domínio restrito da Escola, nem os conhecimentos e competências podem ser alcançados apenas quando formatados num modelo escolar, uniforme, socialmente relevante e homogéneo…

4. E, porque sentimos, nós, tantas vezes meros navegadores à-vista, que este mesmo sistema é dirigido com deliberadas intenções e objectivos que apenas vislumbramos ou conceptualizamos em modelos teóricos abstractos, mas que não deixamos de questionar nos valores e nos princípios que os enquadram, acabamos por, de acordo com as nossas expectativas e crenças, colocarmo-nos num ponto de observação que não é, de todo, um lugar branco – e, muito menos, neutro! Recuso o papel de espectador contemplativo e acrítico, mero registador de fenómenos, quantificador de ocorrências, processador de estatísticas e explicações teóricas, racionais e assépticas.

É uma opção deliberada e consciente que, espero, irei deixando mais clara ao longo das próximas páginas, em que farei uma breve análise dos manuais escolares utilizados durante o período do Estado Novo – os pressupostos conceptuais assumidos são claros, eventualmente comprometidos, nunca assépticos ou meramente racionais, talvez mesmo um pouco apaixonados.

5. Estes são tópicos dispersos e que precisam de ganhar um fio condutor e uma coerência que me permitam transformá-los no eventual projecto de um trabalho de investigação mais alargado e relevante para a minha formação e crescimento profissional, numa perspectiva renovadora da minha própria profissionalidade docente. Este é o contexto e o enquadramento em que penso ir desenvolver o capítulo seguinte. Não tenho pretensão de coerência… apenas realizo um esforço consciente e deliberado nesse sentido!

Os Manuais Escolar no Estado Novo

Quando Victor Hugo proclamou que abrir uma escola era fechar uma cadeia, disse uma daquelas tolices que só homens como Victor Hugo são capazes. Abrir uma escola agora não é fechar uma cadeia. É abrir dez cadeias…

                                                 Alfredo Pimenta in A Voz, em 25/12/27

Um dos factores principais da criminalidade é a instrução.

                                                 Alfredo Pimenta in A Voz, em 02/04/32

O manual escolar é um objeto que encerra uma riqueza imensa – em si mesmo e no significado intrínseco - enquanto objecto que define a mentalidade, a cultura, os princípios e os valores ideológicos, muitas vezes religiosos, e outros, da sociedade que o produz e que o utiliza como instrumento de educação e de reprodução social e cultural.

De acordo com Joaquim Pintassilgo, (APH, 2001) “o manual escolar é (ou pode ser), em si mesmo, o suporte do desenvolvimento curricular de uma disciplina ou área curricular, um instrumento pedagógico e ainda o veículo de transmissão (institucional ou não) de uma cultura, de uma ideologia, de um conjunto determinado de valores. Pela forma como atinge e penetra nos jovens, o manual escolar pode ser um instrumento de regime ou um meio de socialização de crianças e jovens, ou ambos, no processo natural de integração das crianças no mundo escolar e consequente socialização. O manual escolar é ainda um lugar de memória, um encontro com o passado, emocionalmente perturbador, de uma forma positiva e intensa, quer em termos pessoais, quer em termos colectivos.”

Mas, mais ainda, o manual escolar, é hoje também um elo de ligação com a nossa infância e com tempos que nos foram caros em termos afectivos. O manuseamento, de novo, das páginas daqueles manuais que utilizámos na escola, desencadeia na generalidade das pessoas sentimentos afectivos e de nostalgia, que converteram o manual escolar, hoje, em algo mais que um objecto com todas as funções que descrevemos e que não esgotámos, e em algo mais do que um livro que usámos, que nos usou, e que deitámos para um canto. A relação que hoje estabelecemos com os manuais escolares é de uma grande proximidade e afecto, são, de acordo com as palavras de Maria João Mogarro, uma “representação mítica e simbólica da infância e das primeiras aprendizagens formais” e são também um elo comum que nos une na nossa memória colectiva.

Toda a geração entre os 50 e 80 anos passou pela experiência escolar dos manuais únicos instituídos pelo Estado Novo, a partir de 1936, mas com uma concretização efectiva a partir de finais dos anos quarenta e décadas de cinquenta e sessenta. Manuais imbuídos de uma forte carga, inerente a um sistema político que eles divulgaram, inculcaram e pretendiam perpetuar. Todos temos essa consciência, quando folheamos as páginas de um colorido ingénuo, e salpicadas de textos e imagens que sorvemos com uma felicidade intensa, que só é possível na inocência da infância. São memórias que ocupam um lugar central e particularmente querido, tanto no plano individual como no plano colectivo. E só assim se explica que reedições mais ou menos recentes esgotem nas livrarias, transformando-se em inusitados best-sellers.

Podemos perguntar-nos o porquê desta contradição, cidadãos que somos, ciosos da democratização da nossa sociedade, dos nossos valores de cidadania e liberdade, empenhados na construção de um mundo de acesso à informação, o mais diversificada possível, tanto nos conteúdos como nos suportes… porque estamos tão umbilicalmente ligados a um manual único, representante oficial de uma política autocrática e monolítica, monocórdico no discurso ideológico, conservador, nacionalista e de inspiração bucólico-rural? No fundo, tudo aquilo que hoje pretendemos recusar, enquanto democráticos cidadãos de uma República, cujos órgãos institucionais são eleitos por sufrágio livre e universal, em que cada um é livre no discurso, na ideologia e na religião, apologistas confessos e professos da cultura urbana!…

Nostálgicos, talvez, de um tempo que associamos a uma ordem simples, organizada, segura e com referências concretas e compreensíveis… ou apenas a demonstração da enorme eficácia com que alguns princípios simples de propaganda, aplicados aos manuais escolares, quem sabe inspirados na Itália fascista de Mussolini, de acordo com Rómulo de Carvalho, (CARVALHO, 1986), serviram a causa de um Estado que teve a pretensão de regular toda a vida do país e normalizá-la, de acordo com um edifício conceptual, bucólico-rural, socialmente organizado de forma hierárquica, num sistema de “castas” predestinadas, idealizado por aquele, que nesses mesmos manuais, era descrito e apresentado como o “estadista da providência” para Portugal: Salazar.

Marcelo Caetano escrevia num artigo em A Voz, a 26 de Janeiro de 1928: “Uma criança inteligente, filha de um operário hábil e honesto, pode na profissão de seu pai ser um trabalhador exímio, progressivo e apreciado, pode chegar a fazer parte do escol da sua profissão e assim deve ser. Na mecânica da escola única, seleccionado pelo professor primário para estudar ciências para as quais o seu espírito não tem a mesma preparação hereditária que tem para o ofício, não passará nunca de um medíocre intelectual” (CORTESÃO, 1982).

Os Manuais e o Estado Novo

A mãe que cuida da casa e cria os filhos "no amor de Deus e da Pátria". E o Estado. E os pobrezinhos. Os temas dos manuais escolares mudaram pouco ao longo dos 40 anos de ditadura. Ler, escrever e contar, tal como "exercer as virtudes morais e um vivo amor a Portugal", eram as palavras de ordem no tempo em que se achava que os professores primários não deviam ser demasiado doutos. É em 1936 que a reforma de Carneiro Pacheco leva à prática a realização de um objectivo há muito enunciado: livrar a escola do enciclopedismo, ou, na prática, reduzir na sua grande totalidade, qualquer possibilidade de mobilidade social que pudesse decorrer da instrução e através da escola. Ler, escrever e contar, aprendizagens escolares de base, eram o objectivo redutor, desejado e confesso do Estado Novo. De acordo com Luísa Cortesão (CORTESÃO, 1982) o preâmbulo do Dec.-Lei nº 27279, de 24 de Novembro de 1936, começa por se auto-justificar desta maneira: “… o ensino primário elementar trairia a sua missão se continuasse a sobrepor um estéril enciclopedismo racionalista, fatal para a saúde TEACHER GIFmoral e física da criança, ao ideal prático e cristão de ensinar bem a ler, escrever e contar e a exercer as virtudes morais e um vivo amor a Portugal.” E continuava mais adiante, afirmando que estes objectivos se cumpririam “por meio da maior difusão de postos escolares”… que “regidos por quem possua idoneidade comprovada, na falta de um diploma, tantas vezes só decorativo, ministrando o ensino todo o ano lectivo e fiscalizada a sua acção, o posto escolar será a escola aconchegada da terra pequenina onde outra maior se tornaria desproporcionada…

A escola ensinava a "ler, escrever e contar e a exercer as virtudes morais e um vivo amor a Portugal", segundo aquele Decreto-Lei, que introduziu alterações de urgência no currículo do ensino primário obrigatório, então já limitado a três anos.

Na "História do Ensino em Portugal" (CARVALHO, 1986), a compilação do "Diário das Sessões" da Assembleia Nacional - que relata o debate em torno da proposta do Governo para a reforma do ensino - levanta o véu sobre a filosofia que preside no final da década de 30 do séc. XX: os professores primários são alvo de "respeito e medo". "Fazer o ensino primário por meio de agentes altamente intelectualizados tem inconvenientes gravíssimos."

Por outro lado, o "ensinamento de coisas abstractas" é considerado inútil: "Rapaz que fique distinto na escola primária é rapaz perdido para a família." A defesa e apologia, claramente defendidos pelo Estado Novo, do analfabetismo e da ignorância perpassa pelas intervenções e escritos de muitos responsáveis políticos da altura (SANCHES, 2004).

Citado por Luísa Cortesão (CORTESÃO, 1982), o deputado Correia Pinto, defendia em plena Assembleia e a plenos pulmões, a 4 de Maio de 1938, que “… saber ler para acreditar no que dizem os jornais e publicações? Saber ler para fazer a cultura do ódio entre os homens e do ódio entre as classes? Saber ler para saber até que ponto vai a prática e a ciência do mal? Pergunto: vale a pena saber ler para isto?” E, defendendo o «homem do campo inculto e humilde, e que sabe qual o lugar que ocupa na sociedade» afirma: “Este homem tem uma cultura, uma polidez e boa educação; sabe tratar com os fidalgos e sabe tratar com gente da sua igualha. E chama-se a este homem um inculto, um desprezível analfabeto!” que, quando vai para a cidade “não pode aprender rapidamente a cultura da cidade e fica à mercê dos «meneurs», que o levam para a luta de classes, para a guerra social”.

Neste clima a função da escola, era encarada pelo Estado Novo como uma mera estratégia de enquadramento ideológico da população em geral e para controle social. Uma escola que exaltava o nacionalismo, os valores e ideais católicos, a Pátria, a Família e a ligação à terra e ao mundo rural.

Desde 1927 que a coeducação havia sido banida da República e reinstituída a separação dos sexos, a escolaridade baixou para 3 anos, os ordenados dos professores primários baixava e os homens passaram a ser mal vistos neste ofício, o estatuto social que lhes estava inerente degradou-se.

O livro único surge como forma de expurgar os manuais que não se enquadravam nos valores e ideologia dominantes, e como instrumento de inculcação ideológica, corporizando o sistema ideológico oficial: conservador, nacionalista e rural.

De acordo com Andreia Sanches e Bárbara Wong, (SANCHES, 2004) os livros da primeira, segunda, terceira e quarta classes nasceram de uma suposta falta de patriotismo por parte dos escritores portugueses. Em 1937 o Governo abriu um concurso para a elaboração dos manuais a partir dos quais todas as crianças deveriam estudar. Passados três anos, um decreto dá conta do fracasso da operação: "Foram recebidos bastantes originais, mas nenhum se julgou digno de ser aprovado."

A tarefa acabou por ser entregue a uma comissão de técnicos e os livros escolares italianos foram a sua fonte de inspiração, como relata Rómulo de Carvalho em "História do Ensino em Portugal", (CARVALHO, 1986)

O problema foi, pois, ultrapassado. Na escola, onde as turmas “cantavam” em uníssono os nomes dos rios e dos reis, com fotografias de Salazar penduradas por cima do quadro, ao lado do crucifixo, onde meninos e meninas estavam em classes separadas, os textos com que se aprendia a ler tinham temas e personagens bem definidos: a mãe, que "cuida dos arranjos da casa" e cria os filhos "no amor de Deus e da Pátria" num lar "que deve em tudo mostrar alegria". Mas também o Estado, "que coordena e assegura o livre exercício de todas as actividades necessárias à vida da Nação"; a "sabedoria popular" em forma de provérbios; e Deus, em perguntas e respostas sobre doutrina cristã (CORTESÃO, 1982).

Para muitos o manual escolar foi o primeiro e para alguns o único livro que possuíram e leram em toda a vida, e assumiu uma importância enorme na definição de valores e condutas morais, cívicas e religiosas, além de terem garantido a aquisição de aprendizagens básicas e necessárias. Através deles toda uma sociedade se deveria ter imbuído de exaltação em relação aos valores da Pátria, da Família tradicional – pai, mãe e uma prole numerosa – da humildade e da vida e trabalho rurais. Os textos eram construídos com uma nítida e clara intencionalidade de inculcar valores oficiais e normas de comportamento: a caridade, o patriotismo nacionalista, as atitudes de resignação e complacência, o fatalismo determinista, a definição clara dos papeis sociais, em particular a separação dos papeis do homem e da mulher e da autoridade instituída sobre o comum dos cidadãos, embora numa perspectiva de complementaridade de funções, benigna, pré-determinada e fatalista. Pelos textos e pelas imagens perpassava a exaltação da vida rural e dos seus benefícios, ignorando quase a cidade, excepto para gerar comparações sempre favoráveis ao bucolismo e perenidade rurais e da terra.

Na verdade, os finais da década de sessenta e a década de setenta, já dificilmente se enquadravam nesta perspectiva, determinando um afastamento da realidade cada vez maior, já incontornável para a preservação dos “livros únicos”, cujos dias estavam contados, restando o que de mais simpático eles nos podiam ter legado – a memória acarinhada e reconfortante da nossa infância, da escola que nos foi querida (apesar de tudo) e dos tempos em que tudo parecia decorrer de uma forma bem mais simples e segura.

É importante compreender o papel que os manuais desempenharam, sobretudo ao longo do Estado Novo, perspectivar esse papel no contexto ideológico, social e político da época, de forma a podermos compreender outros mecanismos semelhantes, aparentemente (também) ingénuos e inocentes, subjacentes a muitas situações contemporâneas, adaptadas aos contextos e às dinâmicas da sociedade democrática e da informação global em que vivemos na atualidade… por mais paradoxal que isto possa parecer!

Bibliografia 

APH, Associação de Professores de História, 2001, Actas do 3º Encontro de História

Regional e Local do Distrito de Portalegre

Editora: APH, Associação de Professores de História, Lisboa

CANÁRIO, Rui, 2003, Gestão da escola: Como elaborar o plano de formação?

Colecção: Cadernos de Organização e Gestão Curricular,

ISBN: 972-9380-83-x,

Editora: Instituto de Inovação Educacional, Lisboa

 CARVALHO, Rómulo, 1986, História do Ensino em Portugal

ISBN: 9789723101737

Editora: Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa

CORTESÃO, Luiza, 1982, Escola, Sociedade – Que Relação

Colecção: Biblioteca das Ciências do Homem/Ciências da Educação

Editora: Edições Afrontamento, Porto

SANCHES, Andreia, e WONG, Barbara, 2004, Artigo Manuais escolares antes e depois

 da revolução: do livro único à "balbúrdia", in Jornal “O Público” –

 http://www.instituto-camoes.pt/bases/25abril/regimexplicd.htm

STOER, Stephen e MAGALHÃES, António, 2002, A Escola para todos

Colecção: Andarilho,

ISBN: 972-8562-05-5

Editora: PROFEDIÇÕES, Lda, Porto