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Editorial

Educar Sempre

A Minha Escola

O A. E. C. Maior

Crónicas de Aprender

- Entrevista -

 

Cartoon

 

Conversando com José Verdasca, professor na Universidade de Évora

Luísa Moreira
CEFOPNA

1.      Profforma – Como definiria a Escola em Portugal hoje?

A escola é o lugar central da ação educativa e pedagógica pública, a zona da frente onde se enfrentam os grandes desafios na afirmação e construção permanente da sociedade educativa. Por isso, não seria razoável outra coisa, senão esperar e exigir dela mais e melhor serviço público de educação, sob pena de fracassar naqueles que deverão ser os seus principais princípios de eleição no quadro da sociedade democrática: a universalidade escolarmente sucedida, a igualdade de oportunidades, a equidade e justiça educativas. No conteúdo do direito à educação de todos e para todos, consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU em 1948, cabe à escola de hoje tudo o que se lhe exigia no passado, desde as tradicionais funções de educação e formação, globais e específicas, e de laboratório de novos saberes, mas também e cada vez mais a responsabilidade de novos modelos de prestação de serviços de custódia de crianças e jovens e de animação e dinamização sociocultural das comunidades. Vejo-a, portanto, como uma instituição social que sob o permanente escrutínio público democrático das comunidades escolares e da sociedade faz acontecer, todos os dias, durante todo o ano, educação, ensino e aprendizagem, cidadania, coesão social, guarda e dinamização, no desafio permanente de ensinar e promover a todos os alunos, no respeito pela sua diversidade, a realização de aprendizagens de qualidade (mesmo aos que não querem aprender) e de não deixar nenhum aluno para trás. É no quadro deste desafio que devemos situar a escola pública de hoje e do futuro, uma escola a tempo inteiro vinculada ao compromisso de educar e formar em liberdade e para a liberdade os cidadãos do futuro, modernizada e com condições de trabalho e dignidade para alunos, docentes e paradocentes, com autonomia e com uma cultura de responsabilização e prestação de contas, aberta às famílias e comunidades e à participação alargada destas na direção estratégica da escola e no impulsionar do seu destino.

2.     Profforma – Os professores têm sido, sobretudo nos últimos anos, alvo de críticas frequentes pela opinião pública. Como encara essas críticas?

Por vezes, os professores expõem-se demasiado e deixam transparecer para a sociedade uma ideia errada da qualidade e profissionalismo do seu trabalho e da crescente exigência e intensificação social que esse trabalho significa e representa. Não é só de agora, mas também é de agora. A este propósito, vem-me por exemplo à memória a sondagem de 1994 do ‘Jornal Público’ ou anos mais tarde o relatório Braga da Cruz e que à época tantos incómodos e inquietações suscitaram junto de professores e associações sindicais. Ao longo de todos estes anos e das diversas reformas educativas que foram sendo implementadas, as questões do profissionalismo docente e da construção da identidade profissional dos professores não se soltaram de lógicas de excessiva dependência da administração pública centralizada e de uma certa imagem de ‘funcionarismo docente’ que colide manifestamente com a ideia de autonomia profissional e com o princípio da regulação dos pares enquanto principal fonte de ideias e opiniões para apreciar e julgar de forma adequada o trabalho docente. Na verdade, por muito que me custe afirmá-lo face às elevadas qualificações académicas e profissionais que os professores dispõem, tem prevalecido na profissão docente e no seu exercício uma certa ambiguidade na sua valorização pela autonomia e responsabilização profissional e que acabou por dar espaço (quase em exclusivo) a uma certa acomodação de tipo ‘funcionarista’, cultivando nos professores um sentido de pertença mais ao ministério (distante) do que às escolas, legitimando desequilíbrios de representatividade nos fóruns e nas arenas de negociação com clara prevalência dos aspetos laborais sobre os aspetos científico-pedagógicos da profissão. Apesar disso, face à perceção da mudança da natureza e do tipo de exigências do ensino, isso não aliviou, pelo contrário, a crescente pressão sobre as escolas e a exposição crescente dos professores por exemplo através do desenvolvimento e aperfeiçoamento de sistemas de rankings e benchmarks, de âmbito local, regional, nacional e internacional, e daí decorrendo não só um alargamento das funções do professor, como o emergir de papéis mais difusos e o acréscimo substantivo de novos desafios e responsabilidades. No quadro de uma certa lógica de desvalorização da profissão docente, decorrente quer de um trabalho mais intenso, rotineiro e desqualificado dos professores, como mais sistematicamente controlado por parte da administração, e que as teses da intensificação do trabalho e da colonização têm evidenciado, a educação e os seus profissionais tornaram-se alvo de comentários vulgares e comuns, presas fáceis de opiniões e ‘palpites’, uma profissão em acelerada desvalorização e quase esvaziada de poder cognoscitivo aos olhos da sociedade e que nem o tempo, nem tão-pouco os seus representantes de classe, foram capazes de travar e de infletir.

3.     Profforma – Num mundo em mudança constante e, atualmente, vertiginosa, qual pensa que é ou deve ser o papel da Escola?

A escola deve e tem de ser vista como uma organização social de elevada especialização e com profissionais altamente qualificados, na qual se deposita total confiança na realização da sua missão de educar e qualificar com qualidade, estimular e socializar, e de promover e assegurar a equidade e igualdade de oportunidades, a custódia e a dinamização comunitária. A instância central nas sociedades democráticas pós-modernas de promoção do desenvolvimento pessoal de cada educando nos domínios intelectual, psicomotor, afetivo, social, ético, estético, moral, visando a formação e equilíbrio da personalidade e a realização pessoal, o espírito crítico, a emancipação e a participação cívica. Um papel que requer organizações escolares plurais, com autonomia, de natureza descentralizada e de elevada qualificação e especialização horizontal; uma organização escolar que tem clara consciência da sua missão de serviço público de educação, com metas e objetivos bem definidos, tecnologia segura e participação alargada e uma conceção organizativa que pressupõe autonomia organizacional na flexibilização curricular e organização pedagógica, dinâmicas organizativas flexíveis em permanência, gestão direcionada e focada no acompanhamento e apoio direto a alunos, equipas docentes e paradocentes, com ‘nomes e rostos’, tendo a seu cargo o acompanhamento das gerações escolares e a responsabilidade da sua sobrevivência escolar e qualificação, forte implicação e corresponsabilização da comunidade escolar (no cumprimento da sua parte) no âmbito do acompanhamento e evolução da vida escolar dos alunos e das mudanças organizativas que o próprio desafio da escolarização universalmente sucedida implica.

4.     Profforma – Como analisa o atual modelo de avaliação de desempenho docente? Acha que terá impacto na qualidade das aprendizagens dos alunos?

O atual modelo de avaliação de desempenho docente não favorece o trabalho em equipa (constelação de trabalho) caraterístico dos modelos de ‘tecnologia intensiva’, mas acaba por se situar mais na ação individual do professor. Em última análise, foca-se sobretudo no professor como ator individual e isolado na sua sala de aula e não como elemento de uma equipa de docentes com a responsabilidade de trabalhar de forma articulada e integrada no desenvolvimento integral dos seus alunos e nos processos de formação, integração e qualificação destes. Ora, de acordo com os modelos de tecnologia intensiva, a coordenação e a regulação docente dever-se-á processar por ajustamento mútuo e não por mecanismos de supervisão direta ou de estandardização dos processos de trabalho próprios das organizações de configuração estrutural simples ou do tipo burocracia mecânica, mas antes requer uma interdependência recíproca e permanente entre os elementos da equipa (docentes e paradocentes), lógicas colaborativas informais, horizontais e descentralizadas. Não me parece ser nesta linha de pensamento organizacional, muito na base da cooperação recíproca e em lógicas de constelações de trabalho, que o modelo de avaliação de desempenho docente se situa.

5.     Profforma – Como encara o facto de, atualmente, países como a Alemanha e a Áustria serem tomados como modelos de referência para a organização do ensino em Portugal?

São, em ambos os casos, sistemas educativos baseados em lógicas de grande seletividade escolar e em que, apesar do princípio da permeabilidade, os percursos educativos e formativos são definidos muito precocemente e realizados em diferentes tipos de escolas baseadas no desempenho dos alunos determinados pelas ‘notas’ na escola primária. Na verdade, são sistemas educativos com forte enraizamento de subsistemas de formação do tipo dual e que já em 1984 serviu de inspiração em Portugal ao lançamento, no âmbito do IEFP, do ‘sistema de formação em alternância’ vulgarmente conhecido por’ sistema da aprendizagem’ e ainda hoje em funcionamento em formações profissionalizantes de nível IV (anterior nível III). Um subsistema de escola de segunda oportunidade para os alunos desinseridos do sistema escolar, assim se apresentava na altura e que, aliás, a própria Lei de Bases do Sistema Educativo viria a enquadrar dois anos mais tarde, aquando da sua aprovação em 1986, nas chamadas modalidades especiais de educação escolar. Da parte da OCDE têm surgido críticas, em particular ao sistema educativo austríaco, pelo baixo número de estudantes matriculados nas universidades e pela média relativamente baixa de estudantes comparativamente a outros países da OCDE. Nestas, como noutras coisas, as comparações internacionais valem o que valem. Ainda assim, num tempo em que o crescente uso de rankings e benchmarks, enquanto dispositivos de regulação, estão hoje na base da definição das políticas públicas de educação à escala internacional, os resultados do PISA 2009 na Áustria ficaram aquém dos resultados obtidos pelos alunos portugueses em Leitura (470 e 489, respetivamente), foram muito semelhantes em Ciências (494 e 493, respetivamente) e só ligeiramente superiores em Matemática (496 e 487, respetivamente). Que cada um tire as suas próprias ilações …

6.     Profforma – No seu entender a formação contínua de professores constitui-se (ou pode constituir-se) como motor de mudança efetiva na Educação em Portugal?

Do meu ponto de vista pode, preferencialmente em contexto de trabalho e se associada a necessidades de desenvolvimento das escolas e dos professores e outros profissionais da educação, e dos seus compromissos com a permanente melhoria das aprendizagens e dos resultados escolares dos alunos. Um desafio de autonomia organizacional e de mobilização da própria tecnoestrutura escolar em colaboração com centros de investigação e universidades, gerando conhecimento e em especial conhecimento contextualizado e fazendo da sua gestão um recurso central de governação estratégica escolar ao serviço do desenvolvimento da escola e da comunidade.

7.     Profforma – Os CFAE não lhe são uma realidade estranha! Que balanço faz do trabalho deles ao longo dos últimos dez anos de educação em Portugal?

Um balanço muito positivo, ainda que muito condicionados pelas diferentes lógicas e orientações que têm dominado as políticas educativas no âmbito da formação de professores e de outros profissionais de educação. Julgo, no entanto, que o seu progressivo direcionamento para modelos formativos do tipo interativo-reflexivo, muito focados na construção de respostas a problemas dos quotidianos escolares, potenciando a contribuição e envolvimento dos profissionais (formandos) e recorrendo a metodologias direcionadas para a formação e acompanhamento dos processos de ensino e aprendizagem e da investigação-ação contribuiu para o reconhecimento do contributo dos CFAE na melhoria da qualidade educativa e do trabalho dos profissionais docentes e paradocentes ao longo destes anos. Por outro lado, os modelos de resposta a necessidades de desenvolvimento das escolas, suscitadas por elas próprias na sequência de processos de discussão e reflexão alargada sobre a sua missão, projetos educativos e planos de ação estratégica, associados a processos de avaliação interna e externa e da avaliação das lideranças escolares, geraram e despoletaram novos desafios aos CFAE no alinhamento de modelos dinâmicos e inovadores de formação e desenvolvimento organizacional das escolas associadas e do desenvolvimento profissional dos seus membros.

8.     Profforma – E contudo “todo o mundo é composto de mudança”! Será que a existência dos CFAE ainda faz sentido? E se acha que faz, qual o papel que lhes cabe no futuro do nosso sistema educativo, numa perspetiva regional e nacional?

Os CFAE são organizações de grande dinamismo e geometria variável e com capacidade de redesenho institucional constante. São características próprias dos sistemas educativos em estádios de orientação à inovação. Sendo parte integrante das escolas associadas podem acompanhar a gestão antecipada da mudança e usar a sua capacidade antecipatória e inteligência institucional para a formação de redes de base e de associação de centros de formação com universidades e centros de investigação. E é neste contexto de parceria e horizontalidade, num quadro de abertura e confiança recíprocas, tanto à escala regional, nacional ou mesmo euro-regional (ACE, AAA, …) que entendo o espaço de desenvolvimento e aprofundamento dos CFAE.

9.     Profforma – “A prestação de contas” é um princípio da boa gestão, e, num momento em que assistimos a um panorama de serviços que se extinguem e reconvertem, num movimento mais ou menos centralizador da decisão, acha que ainda há lugar para os CFAE na configuração atual do sistema educativo? Ou será que os CFAE correm o risco de se aculturarem em funções que, por natureza, não lhes estariam cometidas, podendo, em última análise, deixarem de existir na configuração que têm tido até aqui?

De certa forma já respondi à questão. É natural que as dinâmicas evolutivas que envolvem e impulsionam os sistemas educativos não deixem de fora as suas próprias estruturas organizativas. De todo o modo, parece existir um sentido de autonomização progressiva das novas escolas de configuração híbrida e que medeia entre configurações estruturais de burocracia profissional, divisionalizada e adhocrática, ou se se preferir, uma espécie de síntese evolutiva de configuração missionária. Qualquer que seja a configuração dominante, há nestas estruturas organizacionais escolares sentido para os CFAE, quer porque os seus principais parâmetros de conceção assentam na formação, especialização horizontal do trabalho, descentralização horizontal e vertical e sistema de controlo de performance, quer porque os seus mecanismos de coordenação radicam na estandardização das qualificações dos seus profissionais, dos resultados e no ajustamento mútuo, na socialização, uns e outros requerendo processos de formação contextualizada e inovação permanentes face às necessidades de aperfeiçoamento e desenvolvimento da tecnologia organizacional, da diferenciação e flexibilização curricular e organização pedagógica, dos métodos de trabalho, processos e instrumentos de avaliação e aos ambientes complexos e dinâmicos onde se movem. Por outro lado, e de certo modo em contraponto às teses da ‘intensificação do trabalho’ e da ‘colonização’, os desafios inerentes à tese do ‘profissionalismo alargado’, fundada na sustentação de que esses novos papéis e responsabilidades subentendem o princípio da extensibilidade evolutiva da função docente e paradocente e requerendo dos professores e dos profissionais da educação um aperfeiçoamento constante e um grande envolvimento na realização do seu trabalho, renovam e exigem formação e aperfeiçoamento permanentes em contexto de trabalho e de proximidade.

10. Profforma – Se tivesse o poder de decidir, quais seriam as três medidas que tomaria de imediato e que, na sua opinião, poderiam significar uma melhoria efetiva no sistema educativo português?

Para ser sintético, baseá-las-ia em três princípios: 1) princípio da autonomia das escolas, abrangendo as dimensões curricular e pedagógica e de gestão estratégica de recursos; 2) princípio da contratualização de metas de melhoria escolar a médio prazo por ciclos de estudos e com negociação de recursos; 3) princípio da vinculação e responsabilização da comunidade escolar face aos compromissos de melhoria e de desenvolvimento da escola negociados e contratualizados.