PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

A Minha Cinderela

Miguel Castro
Instituto Politécnico de Portalegre

Uma das estratégias possíveis de utilizar na introdução de conceitos geográficos, na Educação de Infância, 1º e mesmo 2º Ciclo do Ensino Básico, é a utilização de histórias, clássicas ou tradicionais. Porém, as crianças e os jovens… e inclusivamente muitos adultos, “sofrem” de um egocentrismo que os impede de se colocarem na posição do Outro!

Um exercício que faço, desde há muito tempo, nas aulas dos alunos de Didática de Estudo do Meio, é propor que me escrevam uma história (à sua escolha) mas do ponto de vista de outra personagem, que não a principal. Esta técnica não tem nada de novo, e é utilizada nos mais variados contextos. A desconstrução da história é também uma boa atividade para realizar em sala de aula com as crianças. De acordo com a sua classe etária, e sem pôr em causa a magia que as narrativas contêm, este é um excelente processo de contrariar o egocentrismo (natural nas crianças) e de fazer um exercício mental interessante e desafiante.

Assim, e para dar o exemplo, escrevi a minha Cinderela (embora esta versão só pudesse ter sentido para adultos). É apenas um exercício, mas porque é que a história não poderia ter sido assim?

Imagino que foi assim que tudo se passou: O narrador da história original sentia-se apaixonado pela Cinderela e imaginou a história como qualquer bom apaixonado - descreveu o objeto do seu amor de forma idealizada e não como a realidade evidente para o observador distanciado – como eu, por exemplo!    

“Num país muito distante, e há muitos, mesmo muitos anos (nos tempos em que os reis, rainhas, príncipes e princesas eram sempre muito bel@s e bondos@s – algo que passou de moda, ninguém sabe exatamente por que cataclismo ou fúria da natureza este fenómeno se perdeu!), vivia um simpático casal que possuía muitas terras e riquezas. O par era tão feliz que decidiu que a sua felicidade deveria ser partilhada por descendência. Alguns anos depois, duas filhas aumentaram o feliz grupo. Porém, uma nuvem negra pairou sobre a família e o pai faleceu, devido a uma “súbita doença” (enfermidade muito presente nos atuais meios de comunicação social, mas que ainda nenhum médico conseguiu identificar, e que só acontece a alguns muito famosos).

A viúva, só e com duas filhas, nesses longínquos tempos, enfrentava uma tarefa de difícil prossecução, face a uma sociedade retrógrada, onde a gestão de negócios por uma mulher era vista como algo impossível. Os negócios eram um mundo masculino, algo que como todos sabemos, já não é assim.

Para poder dar às suas filhas uma figura paternal e conseguir gerir a sua fortuna, a viúva acabou por se casar com um viúvo, (novo-rico - diz-se que fez fortuna no negócio da construção de castelos de férias, na região portuguesa dos Algarves, em tempo idos), com uma filha que tinha tanto de bonita como de mimada e fútil.

A princípio, a nova família parecia funcionar relativamente bem. Apenas a pequena Cinderela (filha do viúvo) parecia estar sempre a vitimizar-se pela falta da mãe e da parca presença do pai, sempre ocupado com os negócios. As duas irmãs bem se esforçavam por uma saudável relação a três, mas Cinderela parecia sempre embrenhada nas suas leituras das revistas de bisbilhotices sobre os Pares do reino mais bem colocados.

Isolava-se, e tinha o triste hábito de estar sempre a entoar canções de fraca qualidade dos trovadores mais em voga nesse distante reino; para além disso, não conseguia encontrar a oitava certa, sendo excruciante ouvi-la emitir desafinados sons ao longo de horas e horas seguidas.

Mas, na vida da viúva, outra nuvem negra se aproximava. O novo marido faleceu, também com uma doença clinicamente inexplicável, mas que ainda agora continua a ser “diagnosticada” pelos media com frequência – a doença prolongada. Com tal sorte, a viúva e as irmãs ficaram com a pouco sociável Cinderela, que após a sua perda se isolou ainda mais, remetendo-se para as lides culinárias, após gastar uma impensável quantidade de moedas de prata e ouro em pesados livros de couro com iluminuras de cozinha, que só de ver despertavam apetite. Assim, sempre na cozinha, emitindo sonoridades duvidosas e rodeada de revistas de futilidades, Cinderela, habituou a família a refeições variadas e a horas. Como não parecia querer ninguém a incomodá-la, a cozinha parecia ser um dos seus locais favoritos e onde as irmãs não eram bem-vindas.

Passado algum tempo desta fraca relação familiar, Cinderela convenceu-se de que estava guardada para mais altos desígnios, achando que iria casar-se com o príncipe do reino, que embora sendo presença assídua nas notícias dos arautos cor-de-rosa, tinha também tanto de bonito, como de oco.

Quando surgiu a notícia da realização de um baile para que o herdeiro do trono pudesse, numa tentativa desesperada, escolher alguém para passar o resto da vida com este nobre pouco inteligente, assegurando a sucessão, Cinderela delineou um plano com o objetivo supremo de “engatar” o dito monarca e dar o “golpe do Baú” (na altura o termo era literal, pois as moedas guardavam-se mesmo em baús, segundo os mais especializados historiadores de História Económica de Reinos Distantes).

Para tal, Cinderela engendrou uma estratégia extravagante que passava por um coche, estilo desportivo, último modelo da mais cara marca de veículos, criados muito especializados em condução desportiva de carros desta natureza, cavalos Lippizzanos, mais brancos do que a roupa da barrela do palácio real, e vestuário tão exclusivo que incluía sapatos de cristal.

Face a este plano, tanto as irmãs, como a viúva, tentaram impedir a loucura, argumentando que o dinheiro do construtor, para além de pertencer a todas, não era para ser desperdiçado em futilidades e planos sem nexo. Para além destas razões, acrescia que o reino atravessava uma grave crise, sendo necessário que todas as famílias poupassem, caso contrário o Rei teria que pedir auxílio externo. Os Reis vizinhos, que possuíam as moedas capazes de salvar a monarquia e os seus súbditos, tinham fama de mal dispostos e de levar juros semelhantes aos agiotas mais empedernidos.

Cinderela não se demoveu. Contactou uma madrinha distante, advogada de fraca reputação, com fama de conseguir extorquir dinheiro a famílias com alguns recursos, de formas pouco lícitas, e pô-la a par das suas intenções. Na verdade, a madrinha conseguiu desanexar parte substancial da fortuna do pai de Cinderela, e esta levou avançou com o seu plano. Porém, existia uma condicionante. Devido ao clima de crise económica do reino, o velho monarca decretou que, a partir da meia-noite do dia do baile, a polícia do reino teria autoridade para confiscar uma parte muito substancial dos baús das famílias mais abonadas. Assim, Cinderela e a madrinha teriam que levar os baús de dinheiro para um reino próximo, onde as caixas ficassem guardadas de forma anónima, podendo os proprietários ir utilizando o dinheiro sem correr o risco de o ver confiscado.

Na noite do baile, Cinderela apareceu, chamando desde logo a atenção do oco príncipe pela extravagância e aparato que provocou à chegada. Abanaram os corpos ao som dos mais recentes êxitos, e na altura certa, fazendo o ar mais desprotegido e desamparado de todo o universo, Cinderela levou o príncipe para o jardim e convenceu-o da sua adequação ao cargo de princesa, neste caso, não consorte, mas com muita sorte. Nem este trocadilho o pobre príncipe percebeu.

A meia-noite aproximou-se e Cinderela justificou a necessidade de se retirar para retocar a pintura. Vendo que a donzela seguia o caminho da saída, o príncipe correu para a esclarecer que a casa de banho ficava ao fundo à esquerda. Correu de tal forma que tropeçou duas vezes e com o cansaço não conseguiu transmitir a preciosa informação. A rapariga, pensando-se perseguida, acelerou, perdendo um dos sapatos de cristal na corrida até ao coche.

Depois de descansar uns bons 10 minutos, o príncipe lá se dirigiu à saída para tentar avistar a única donzela que se dispusera a casar com ele. Encontrou então o sapato de cristal e pensou que sempre era melhor do que nada! Se o vendesse, em tempo de crise, o artigo ainda valeria alguma coisa. O pai, no entanto, não achou graça a perder a única donzela do reino, com a mente suficientemente fraca para querer ficar com o filho. Enviou-o então, de casa em casa, de sapato na mão, para o experimentar em tudo quando fosse extremidade inferior das donzelas.

Com cara de vítima e parecendo a mais sofredora de todas as donzelas da casa, Cinderela esperava, juntamente com as irmãs, o momento de calçar o sapato. Os sentimentos, no entanto, eram opostos - enquanto as duas filhas da viúva estavam apavoradas perante a possibilidade de conseguir calçar o sapato, tendo assim que casar com aquele rapaz meio tonto, Cinderela via o seu plano prestes a resultar.

Após um sonoro NocNocNoc, a porta abriu-se e lá estava o envergonhado príncipe de sapato na mão, dizendo que o queria experimentar a todas as donzelas da casa. Por esta altura, já se encontrava algo desesperado, angustiado e agoniado de tanto pé ter calçado, numa época em que as facilidades de limpeza corporal não eram tão eficazes e frequentes como atualmente.

Por fim, serviu a Cinderela, que foi, não apenas coroada princesa, como justificou e deu sentido o velho ditado, comum naquele reino: “o crime sempre compensa alguma coisa!”

Viveram juntos para sempre, mas não sabemos exatamente se felizes ou infelizes, pois as facilidades de comunicação da época não fizeram chegar a nós notícias fidedignas. Por esses tempos, não existiam o Facebook, o Twitter ou o Instagram, e as redes sociais eram, literalmente, redes de cordame de sisal ou outra matéria-prima entrelaçável, seguras por pessoas que fazendo uma tarefa iam conversando - pescadores ou caçadores de unicórnios, por exemplo.