PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

Cultura de colaboração versus cultura de substituição. Breve reflexão em torno da integração de saberes no 1° CEB

José Luís Carvalho
Agrupamento de Escolas N.º 1 de Elvas

A recente incorporação do Inglês como área disciplinar do currículo do 1° ciclo do Ensino Básico acompanhada da criação de um novo grupo de recrutamento, a sobrevalorização das disciplinas (Matemática e a Português) sujeitas a exames de avaliação nacional, a rígida fixação e distribuição dos tempos lectivos de cada área de aprendizagem, a “especialização” da área das expressões artísticas e físico-motoras, a imoderada escolarização das Actividades de Enriquecimento Curricular ou a expansão da “forma escolar” para o espaço e tempo do “não formal” como refere Carlos Pires (2012), está de novo a trazer à tona da água a discussão em torno do risco de uma ocorrente e porventura excessiva “disciplinarização” do ensino no 1° Ciclo do Ensino Básico (1° CEB).

Não está em causa a necessidade e a importância da inclusão de muitas destas valências no 1° CEB, há muito tempo reconhecidas como enriquecedoras do currículo e consideradas essenciais para a formação integral de um cidadão mas, acima de tudo, a forma espartilhada e parcamente sustentada como presentemente elas estão a difundir-se pelo currículo deste ciclo de aprendizagem, sem uma adequada supervisão pedagógica e sem a necessária articulação e integração com as outras áreas disciplinares, nomeadamente com as actividades curriculares centrais ou nucleares.

As vozes a favor de um modelo de “disciplinarização” das ofertas educativas do curricular e do extracurricular através do recrutamento de professores devidamente qualificados defendem que, com mais professores “especializados” a leccionar no primeiro ciclo de aprendizagem, a transição do 1° CEB para o ciclo seguinte se fará de uma forma mais tranquila e articulada. Consideram que, na Escola e na sociedade actual, não faz sentido que um único professor domine em simultâneo tantas áreas do saber. José Pacheco refere mesmo que a prática da monodocência, tal como é concebida em sentido restrito, tem contribuído para uma redução drástica do currículo real (supervalorizando as áreas ditas "nobres" em detrimento da "insignificante" área das expressões), para o isolamento físico e psicológicos dos professores e para um sentimento de auto-suficiência que se opõe à ideia de projecto ou de gestão do currículo. (Pacheco, 2000)

As vozes relutantes a esta desorganizada transformação defendem que o processo de ensino e aprendizagem no 1° CEB deve assentar num modelo de desenvolvimento transversal que permita articular e integrar as diferentes áreas do conhecimento, das mais científicas (matemática e ciências naturais), às humanísticas e artísticas (língua, literatura e expressões).

A hegemonia do conhecimento fragmentado, cingido às disciplinas, impossibilita frequentemente que se produzam relações entre as partes e a totalidade e, por isso, deve ser trocada por um modo de conhecimento capaz de apreender os objectos no seu contexto, na complexidade, no seu conjunto. (Morin, 2001).

De modo equivalente, no entender de Maria do Céu Roldão, “esta abordagem integrada do currículo faz sentido por duas razões. Por um lado, porque as crianças ainda estão numa fase do seu desenvolvimento em que concebem e percepcionam predominantemente a globalidade do real. Por outro lado, porque a abordagem integrada é indispensável para se poder aceder a conhecimentos especializados. (…) É impossível dar sentido a conhecimentos especializados, ramos específicos do conhecimento, sem ter tido a percepção e a compreensão interactiva do que é a globalidade das coisas.” (Roldão, 2000, p. 27)

Também não é despropositado considerar que as crianças do 1° CEB estão num momento chave do seu desenvolvimento social e afectivo e, nesse sentido, necessitam de um acompanhamento constante, proximal, e isso só é possível através de uma relação permanente, continuada e sustentada, com um ou dois docentes de referência.

Além disso, um modelo de “disciplinarização” contraria a visão que se baseia numa perspectiva integrada do desenvolvimento e do sucesso das crianças, assente na realização de experiências de aprendizagem activas, significativas, diversificadas, integradas e socializadoras, através da articulação e da contextualização dos saberes. O antigo modelo de organização curricular do 1° CEB reforçava bem esta ideia: "As experiências e os saberes anteriormente adquiridos recriam e integram, no conhecimento, as novas descobertas. E os progressos conseguidos, na convergência de diferentes áreas do saber, vão assim concorrendo para uma visão cada vez mais flexível e unificadora do pensamento a partir da diversidade de culturas e de pontos de vista." (Ministério da Educação, 2004, p. 23)

Margarida Belchior, uma experiente professora do 1° CEB, colega com quem partilhamos muitas inquietações, refere que a questão da abordagem fragmentada dos conteúdos está intimamente ligada à visão que temos do ser humano, do papel da Escola, do lugar que os saberes desempenham no desenvolvimento humano, da concepção que cada um possui sobre a forma como se adquirem os conhecimentos. A este respeito, recorda insistentemente as cinco componentes do que é aprender, definidas pelo conhecido referencial do relatório Delors (1996): aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser, aprender a viver em conjunto e, finalmente, aprender a aprender. É para isto que serve a escola e se assim não for seguramente andamos todos enganados! (Belchior, 2013)

"Uma consequência negativa da «disciplinarização», e do isolamento em relação às outras componentes do currículo, seria a tendência para o empobrecimento do trabalho que se desenvolve nas diversas disciplinas, reduzindo a atenção aos métodos de trabalho, às questões da cidadania ou mesmo à realização de projectos" (Abrantes, 2002, p. 12), com o pretexto de que isso incumbe sempre a outra qualquer disciplina.

Esta “disciplinarização”, nomeadamente a que se refere à introdução do Inglês, da Música, da Educação Física e até da “Informática” (através do recente programa piloto de “Iniciação à Programação no 1.º Ciclo do Ensino Básico”), está a ser feita em grande parte com recurso a professores de outros ciclos de ensino e assegurada em regime de substituição. A maior parte destes professores está, sem dúvida, cientificamente preparado para cumprir a missão que lhes incumbe, mas tememos que muitos deles não possuam (por enquanto), o conhecimento curricular, o conhecimento pedagógico específico imprescindível para leccionar no 1° CEB nem tão pouco a suficiente motivação para o fazer. Aliás, no que se refere ao Inglês, esta disposição contraria a recomendação do Conselho Nacional de Educação que advoga que a docência desta disciplina no ciclo em apreço seja garantida por professores especialistas no domínio do “ensino precoce da Língua”, envolvendo formação científica e pedagógica devidamente certificada, mas assegurada em regime de coadjuvação. (Parecer n.º 2/2014 - DR 2.ª série, n.º 19, de 28 de Janeiro).

É manifesto que no âmbito do 1° CEB o paradigma deve ser o da integração e articulação disciplinar, assente num modelo de “equipas transdisciplinares” no decurso dos quatro anos de escolaridade, com um docente titular “generalista” mais orientado para o desenvolvimento transversal do currículo, em coadjuvação colaborativa com outros docentes (não mais de três) na área das Expressão e Educação Físico-Motora, do Inglês, do Apoio ao Estudo e da Oferta Complementar. É ainda de considerar a indispensável colaboração com os professores de educação especial para atender às necessidades de apoio individualizado de alunos com dificuldades de aprendizagem ou de alunos com aptidões específicas ou precoces.

Em integração de conhecimentos porque nestas idades o saber não deve ser construído de forma fragmentada e uma abordagem integrada do currículo é indispensável para dar sentido a conhecimentos mais específicos (Roldão, 2000). O verdadeiro problema não é fazer uma adição de conhecimento, é organizar e dar sentido a todo o conhecimento. (Oliveira e Santos, 2012)

Em coadjuvação porque o decente titular não deve, em geral, ser substituído enquanto outro docente (colaborador) assume um papel mais activo de orientação do processo educativo. Coadjuvação significa colaboração, aproximação, apoio solidário, partilha, complementaridade, entreajuda, trabalho em equipa/rede antes, durante e depois da aula propriamente dita, de tal modo que se esbatam as diferenças entre uns professores e os outros. Diferenciar os processos de trabalho, fazer adequações curriculares, questionar e reorientar as práticas, funcionar articulada e integradamente no que diz respeito às aprendizagens e garantir a sequencialidade do percurso escolar, tem muito a ver com a forma como os professores se relacionam e organizam e com a forma como podem rentabilizar o trabalho docente e tirar partido das suas múltiplas valências.

Contudo, transpor o risco do hermetismo disciplinar, leccionar invocando conhecimentos de outras disciplinas envolvendo colaboração e interacção entre professores, deve estar institucionalizado, deve ser efectuado no quadro de um projecto coerente de integração curricular, pedagógica e organizacional. Não deve apenas depender do critério, do interesse, da boa vontade e da dedicação de alguns professores que, por razões óbvias, cada vez mais tomam a iniciativa e se disponibilizam, voluntariamente, para colaborar num trabalho conjunto – muitas vezes em contramão às disposições superiores e aos requisitos legais, em tempos que nem sequer existem nos horários que lhes são atribuídos.

Esta é, seguramente, uma das formas de, por um lado, evitar que os professores do 1° CEB caiam na tentação de funcionar de uma forma demasiado segmentada e, por outro, procurar que os outros professores funcionem integradamente no que diz respeito à natureza e à globalidade das aprendizagens.

Como lucidamente interpreta Maria do Céu Roldão, para que os professores procurem uma interacção máxima entre as áreas do saber têm ainda de ambicionar ir más além, têm de deixar de ser “meros executores do currículo e passar a assumir a sua construção, gestão, avaliação e reorientação, podendo afirmar-se, neste contexto, como especialistas «em ensinar, ou seja, em fazer os outros aprender».” (Roldão, 2001, p. 25)

Como pretendemos deixar explícito, nas condições actuais, o que preconizamos alicerça-se fundamentalmente num autêntico trabalho em equipa no 1° CEB, sempre na presença de um professor dito “generalista”, algo a que poderíamos chamar de um regime de docência em colaboração (“co-teaching”) ou, se preferirem, de docência enriquecida através da interacção entre pares.

Também defendemos este modelo de trabalho em coadjuvação durante o primeiro ou durante os primeiros anos de carreira de um professor do 1° CEB. Seria com um ano de indução na carreira, no princípio da actividade docente, em que um professor mais jovem, genuinamente mais entusiasmado, conhecedor de novas estratégias, métodos e recursos, mas mais inexperiente, trabalha com o acompanhamento contíguo de um professor com mais anos de docência, com mais conhecimento da realidade, com mais experiência de leccionação e das múltiplas funções pedagógicas e administrativas que um professor tem de assumir. Esta simbiose, esta colaboração, permitiria uma salutar transferência de ideias e experiências entre ambos os profissionais, que fomentaria um desenvolvimento adequado, competente e harmonioso da carreira docente. Este período de indução da carreira chegou a ser legislado nos anos 80 do século passado, mas infelizmente nunca chegou a se concretizado.

No entanto, o que assistimos actualmente é a uma segmentação de saberes, a uma descontextualização do currículo, a um isolamento autista das disciplinas, à rigidez de horários e a, como lhe chamou Santana Carrilho, "uma animada e pós-moderna balbúrdia pedagógica", com professores a entrarem e saírem constantemente das sala de aula para leccionar as áreas não disciplinares, as áreas de apoio curricular, realizar permutas, fornecer apoios, observar e avaliar colegas, etc.

Outro distinto colega já aposentado, Daniel Peixoto, suficientemente retirado da Escola para ter dela uma visão descontaminada, refere amiúde com algum desencanto: “Este sistema está cada vez mais «partido» de disciplinas e saberes que se vão introduzindo no 1º CEB, vai retirando o espaço que devia ser das próprias crianças, que cada vez menos, aprendem a gerir o tempo que devia ser seu.”

Acresce a esta problemática a evidente constatação de que os Directores de Agrupamento se encontram cada vez mais manietados e limitados por normativos inflexíveis e inspecções implacáveis, incapazes de ousar definir, com autonomia e visão estratégica, uma organização curricular alternativa em articulação com os Departamentos Curriculares e Conselhos de Docentes e em congruência com o Projecto Educativo e o Projecto Curricular.

Neste contexto, é inevitável não falarmos sobre a forma como outros países organizam e desenvolvem a educação primária, nomeadamente a Finlândia em que os alunos obtêm sempre notáveis resultados nas provas de avaliação internacionais. Esta excelência não se prende apenas como o frio dos invernos longos e escuros, muito apropriados para o estudo.

Sem pretender sobrevalorar o modelo finlandês, é importante referir que esta excelência está muito relacionada com a sólida formação inicial e contínua dos professores ministrada neste país, com o diagnóstico precoce de problemas dos alunos e com a célere intervenção de professores e técnicos de apoio (sem poupar em recursos humanos), com uma menor carga horária diária em comparação com o nosso país, mas também e muito em particular com a constante determinação de assegurar, em equipa docente, um trabalho curricular mais integrado a fim de proporcionar mais qualidade pedagógica à iniciação das aprendizagens formais deste ciclo de escolaridade.

Recentemente, soubemos que a Finlândia se prepara para a partir de 2016 implementar uma nova reforma curricular, ambicionado sempre melhorar a qualidade do ensino e possibilitar que os alunos aprendam mais e melhor. De acordo com a jornalista do jornal Publico, Clara Viana, baseada numa entrevista por escrito à directora do Centro Nacional de Educação finlandês, Irmeli Halinen, o que se pretende com o novo currículo nacional é uma nova forma de coabitação entre as disciplinas que atribua uma "nova ênfase às práticas de cooperação em sala de aula e implemente conhecimentos e competências interdisciplinares, através do estudo de fenómenos e tópicos que será feito com a colaboração entre vários professores em sala de aula”.

Do ponto de vista de José Morgado, professor do Instituto Superior de Psicologia Aplicada, não se trata de uma abolição de disciplinas mas de gradualmente se começar a desenvolver formas de trabalho em sala de aula, ou fora dela, que transcendam a lógica do trabalho interno a cada disciplina, definindo um conjunto de tópicos que exigem saberes oriundos das diferentes disciplinas e que sejam explorados de forma transversal. Esta "reforma corresponde a uma «modernização» do pensamento educativo introduzindo uma dimensão de globalidade e mobilização integrada e contextualizada dos saberes aprendidos de forma mais compartimentada nas diferentes disciplinas dando-lhes um sentido que potenciará a motivação e a aprendizagem e aquisição de uma formação global não segmentada que actualmente se requer" (Morgado, 2015). Creio que em Portugal já tivemos algo nesta linha de pensamento: a Área-Escola e a Área de Projecto. Recordam-se?

Em suma, pretende-se que todos os processos e conteúdos estejam interligados, que existam motivos importantes e práticos para os aprender e que sejam abordados de uma maneira global, mais significativa, através de experiências, actividades e projectos combinados de forma criativa. Pretende-se que esta renovação se opere com os professores de diferentes áreas a trabalhar em equipa docente. Pretende-se ainda activar a participação dos pais e da sociedade na vida da escola e incentivar o estabelecimento de múltiplas parcerias para o desenvolvimento de actividades escolares. Presentemente, estamos mais longe ou mais perto de que isto aconteça nas escolas portuguesas?

Bibliografia:

Abrantes, P. (2002). Finalidades e natureza das Novas Áreas Curriculares. Em "Reorganização Curricular do Ensino Básico - Novas Áreas Curriculares". Lisboa: Ministério da Educação - Departamento da Educação Básica.

Belchior, M. (2013). Aprender na Sociedade da Informação e do Conhecimento - entre o local e o global - contributos para a Educação para a Paz. Tese de doutoramento em Educação (TIC na Educação). Lisboa: Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. URL: http://hdl.handle.net/10451/8005

Ministério da Educação (2004). Organização Curricular e Programas - Ensino Básico - 1 Ciclo. Lisboa: Ministério da Educação - Departamento da Educação Básica (4 edição).

Morin, E. (2001). Os Sete Saberes necessários à Educação do futuro. Brasília: UNESCO (3ª edição)

Morgado, J. (2015). A reforma curricular finlandesa e o estado da arte em Portugal. URL: http://atentainquietude.blogspot.pt/2015/04/a-reforma-curricular-finlandesa-e-o.html

Oliveira, F.; Santos, E. (2013). A prática da transversalidade na formação de professores - Reflexos no Ensino Básico. Jundiai - Brasil: Paco Editorial.

Pacheco, J. (2000). Intervenção no Painel Monodocência - Coadjuvação. Em "Gestão Curricular no 1° Ciclo", Lisboa: Ministério da Educação - Departamento de Educação Básica.

Pires, C. (2012). Política de "Escola a Tempo Inteiro" - Emergência da uma perspetiva globalizada da ação educativa. Em actas do III Congreso IberoAmericano de Política y Administración de la Educación. Zaragoza: Universidade de Zaragoza.

Roldão, M.C. (2000). Gestão Curricular - A especificidade do 1 Ciclo. Em "Gestão Curricular no 1° Ciclo", Lisboa: Ministério da Educação - Departamento de Educação Básica.

Roldão, M.C. (2001). Currículo e políticas educativas: tendências e sentidos de mudança. Em Gestão flexível do currículo, contributos para uma reflexão crítica. Lisboa: Texto Editora.

Viana, C. (2015). O que a Finlândia vai mudar no ensino é em tudo contrário ao que Portugal fez. URL: http://www.publico.pt/sociedade/noticia/o-que-a-finlandia-vai-mudar-no-ensino-e-em-tudo-contrario-ao-que-portugal-fez-1691439