PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

A Jangada

Francisco Salgado
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Pede-me o CEFOPNA um testemunho –memória dos meus tempos de professor da velha guarda. Apesar do imprevisto da solicitação que me deixa muito honrado, não sei se serei capaz de me lembrar de algo suscetível de captar o interesse do leitor. Os episódios são inúmeros, a arte da narrativa é que fraqueja. Acresce ainda que já abandonei a docência há muitos anos e, embora não tenha posto de parte a ligação à pedagogia e à didática, a idade não perdoa, cliché muito usado, mas sempre muito verdadeiro, principalmente no que respeita ao desgaste dos neurónios.

Peço, pois, a vossa complacência para esta tentativa de rememorização episódica.

Nos meus primeiros anos de docência, recém-licenciado coimbrão, entendi que devia complementar as minhas aulas com outras actividades pedagógicas que ajudassem a motivação dos alunos e lhes proporcionassem novos horizontes, para lá do estrito cumprimento dos programas oficiais.

Assim, com o apoio do Sr. Reitor, procurei incentivá-los na prática da representação teatral.

Após algumas tentativas experienciais, levando à cena algumas peças de carácter mais juvenil, dado o entusiasmo dos alunos e face ao incentivo do poeta José Régio, atrevemo-nos a ir um pouco mais além e procurar pôr no palco uma obra mais elaborada e, se possível, inédita.

Ainda aconselhados por Régio, escolhemos uma peça de um dramaturgo pouco conhecido, Romeu Correia, que tinha enviado ao poeta, para apreciação, a sua publicação mais recente: “A Jangada”.

Metemos mãos à obra. Escrevi ao autor, dando-lhe conta do nosso desiderato, mas que não tínhamos dinheiro para pagar direitos de autor.

Respondeu de imediato, dando o seu consentimento, prescindindo dos direitos e agradecendo a intenção de representação. A posteriori cuido que este entusiasmo se deveu mais ao facto da sugestão ter partido do poeta Régio do que se tratar da estreia que lhe propúnhamos… Não sei, mas o que é certo é que abraçámos a ideia de alma e coração.

Durante dois ou três meses as actividades da M.P., rotineiras e desenxabidas, foram substituídas pelo entusiasmo cada vez maior e participado, da preparação da representação de “A Jangada”.

O Romeu Correia andava ansioso como os alunos. Escrevia (nessa altura ainda não havia telemóveis!) procurava saber do andamento dos ensaios… O José Régio volta e meia ia assistir… Buscávamos soluções técnicas para os problemas que a representação levantava…

O Sr. Vice-reitor, o pintor João Tavares, entusiasmou-se também e emprestou todo o seu talento na elaboração da cenografia… a luminotecnia ficou a meu cargo… Julgo que durante esses 2/3 meses nunca os alunos dos 6º e 7º anos se dedicaram tanto ao Liceu. Ainda hoje, passados mais de 50 anos, falam com saudade dessa experiência ímpar. Iam representar uma peça inédita, para mais com a presença em palco do próprio autor que previamente haviam convidado. Venderam os bilhetes todos do Crisfal, os alunos de fora traziam as famílias… era a grande festa que andavam a preparar.

De um momento para o outro a notícia-bomba : O Dr. Marcão, esbaforido, entra pelo ginásio onde dávamos os últimos retoques e lançou sem mais delongas: - A “Comissão de Censura” de Lisboa não permitia a representação, porque a obra não fora submetida à sua apreciação.

Então, assisti a um  dos espetáculos que jamais esquecerei: rapazes e raparigas desatam a chorar que nem Marias Madalenas e os gritos de revolta começaram a fazer-se ouvir. O Reitor e o Dr. João Tavares lá os acalmaram e prometeram que a peça se representaria nem que fosse no ginásio do Liceu.

O Dr. Marcão e eu fomos a correr ao quartel de São Bernardo  levar a obra, obra essa que, só por desconhecimento nosso dos trânsitos legais, não tinha sido enviada por nós para apreciação da já referida comissão. Seguiu de imediato para Lisboa.

Duas semanas depois a citada comissão enviou a resposta. O lápis azul apenas censurava uma fala de uma personagem: duas irmãs comentavam entre si uma cunhada de quem não gostavam e uma delas, referindo-se à mulher do irmão, exclamou “mas olha que ela é bonita. Eu já a vi nua e tenho que reconhecer que é bonita!” Lápis azul da censura. Era linguagem obscena!

No entanto, acrescentaram uma nota: “A peça só podia ser vista por maiores de 18 anos!”

Assim aconteceu, com o prejuízo dos bilhetes já vendidos, mas orgulhámo-nos todos de um facto insólito e único em Portugal, ou talvez em todo o mundo: um espetáculo para maiores de 18 anos ser representado por actores, todos com menos do que essa idade!

Os que viveram esta aventura ainda hoje falam dela, por lhes ter oferecido novas perspectivas de um mundo diferente dos manuais bafientos que seguiam.