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Estas coisas das palavras
Isabel Velez do
Peso Já lá vão muitos anos que concluí o meu curso do então Magistério Primário. Era um curso que, para além de nos habilitar para lecionar o 1º ciclo, então ensino primário, nos ensinava também a ser assistentes sociais, mães substitutas e apoios, muitas vezes únicos, nos meios mais desfavorecidos. As crianças que iam à escola, para além da aprendizagem das letras e dos números, com muita História de Portugal pelo meio, aprendiam também as regras sociais mais básicas, regras de higiene e de convivência. Nós, as professoras primárias, eramos, normalmente, bem recebidas e até mimadas nos lugares mais isolados onde nem sequer havia, muitas vezes, televisão. Nos primeiros anos em que exerci a minha profissão estive em escolas onde os tampos das carteiras caíam com frequência, onde tinham de estar sentadas três crianças juntas, onde o frio fazia frieiras e o calor trazia odores pouco agradáveis… As turmas eram compostas por alunos das quatro classes (hoje ano) e sempre cerca de 47 ou 48. A verdade é que eu própria me admiro ainda hoje com o facto de, por exemplo, no Natal quase todos os alunos do 1º. ano lerem bem. Muitas dessas crianças vinham do campo, nada habituadas e grandes socializações e expressando-se com certa timidez. Sempre que necessitavam de alguma coisa, muito a medo, hesitavam, colavam os olhos no chão e, muito à maneira deles, lá saía o pedido. Acontece que usavam os termos a que estavam habituados e eu, e por certo outras colegas, ensinávamos as palavras que, ainda que consideradas corretas, nem sempre eram fixadas com facilidade. Será bom lembrar que a realidade familiar, o vocabulário utilizado fora das paredes da escola, era bem diferente e mais poderoso que os nossos ensinamentos… Um dia, um dos meus alunos mais pequeninos veio junto à secretária e ficou parado, vermelho, sem nada dizer. Olhei-o e percebi que estava inquieto. De repente, os colegas começaram a rir e a gozar, dizendo que ele tinha feito "chichi" nas calças. Na verdade, esta palavra já lhes tinha sido ensinada várias vezes, como uma forma correta de pedir para ir à casa de banho, pois antes simplesmente diziam "posso lá ir fora mijar?". Perante as calças molhadas e a aflição do pequeno, disse-lhe que devia ter pedido a tempo, em vez de ter feito aquela porcaria. A resposta, ainda que entre lágrimas envergonhadas, foi simples: "Então o que quer? Eu esqueci o nome do mijo!" Nada havia a responder, pois o pobre estava aflito e a memória não o ajudou…
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