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A lição continua

Rui Cardoso Martins
 

A neve, o calor, a explosão, o silêncio, um poema estranho, a serra e muitos nomes.

Voltei à escola há pouco tempo, tão pouco que entrei no papel de velho. Estive duas horas a falar com os meus colegas que não tive, nem podia, nasceram depois de me ir embora. Jovens alunos como fui. Mas o tempo que nos separa não interessa se temos o coração no mesmo sítio. A base onde uma cabeça se formou... a minha, mal ou bem... a Escola Secundária Mousinho da Silveira, Portalegre. Manhã eterna, com as árvores da serra a espreitarem-me dos vidros, a falar com jovens, a engasgar-me mais do que eles, voltando os arrepios e calores e medos e o amor da adolescência.

No entanto, que mudança térmica...

Eu digo “neve” e volta o grande nevão dos anos 80, o que estivera meio século à espreita na cidade, e pegámos nas carteiras e bancos-trenó e despenhámo-nos pelas rampas geladas da escola, como nos Olímpicos de Inverno, aqui ninguém esperava uma coisas dessas, e comemos neve para matar a sede. Mas as salas de aula geladas, geladas todo o Inverno.

Digo “calor” e volta o exame de Filosofia, o tudo ou nada para sair e aprender mais, continuar os anos do liceu, fazer de mim outra coisa, mas não deixar de ser. A véspera à noite, em cima da bicicleta, a discutir a Crítica da Razão Pura, de Kant, com um amigo, e de manhã entrámos numa sala de Agosto e fizemos um exame a mais de quarenta graus centígrados, a prova mais suada da existência de Rui Cardoso Martins, que razão pura tenho ainda para escrever enquanto derreto? Salas a ferver todo o Verão no nosso liceu sueco do Alentejo.

Agora... Com que então ar condicionado, persianas, aquecimento e arrefecimento à nossa vontade! Que felicidade, garanto, que felicidade ver isso e telhaditos contra a chuva, entre os pavilhões, e tudo bem pintado e... bolas, pareço um velho a falar, agora lembrei-me que disse “explosão”. Sobre os factos, o artigo insolente que escrevi no jornal da terra, o primeiro duma vida: havia, às vezes, ameaças de bomba contra testes, um parvo qualquer telefonava duma cabine, e nesse dia a polícia vasculhou, os pastores-alemães cheiraram, está tudo bem, o local foi limpo, mas logo que entrámos nas salas...

vuuuuuuuuuuuuussssssss booooooooooouuuummmmmmmmmm!

... uma bomba, uma bomba, desta vez era a sério, escrevi eu (acho que escrevi, é melhor encontrar essa nódoa na carreira, nalgum arquivo deve estar, é pô-la na pasta do humor), e as meninas a chorar e os rapazes a correr, confusão e pânico e, desculpa, professora de História a quem acusei de ter gritado

—   eu quero morrer sem sofrer!

foi uma informação falsa que imprimi sem confirmar. Lição que aprendi nessa semana: tem cuidado com as palavras, podem fazer mal. (Outra lição, já agora: não tenhas medo de magoar com as palavras se o que disseres estiver perto da verdade, nem que sofras com isso). As palavras matam e as palavras salvam, eu quero que salvem. A bomba, afinal, fora um jacto da força aérea que passou a baixíssima altitude, por cima da barreira do som, e o estampido fez tremer os caixilhos e os vidros das janelas como bolas de sabão, sem perigo.

Digo “silêncio” e lembro os amigos que morreram de todas as maneiras e feitios, leucemias, desastres de automóveis, outros, e nesse grande mistério alentejano da morte porque se quer morrer.

Digo “um poema estranho” e lembro o primeiro prémio (nunca se esquece), levei a concurso o poema Com Quisto. Li-o na sala de convívio. Qualquer dia vou à selva e encontro uma cidade perdida, etc., cheia de ouro e fico muito rico, etc, mas não quero nada disso, afinal. Quero o que estou a fazer neste momento, escrever e ser lido, se estão interessados.

Digo nomes e digo professores Renato, Farinha, Arlanda, Filomeno, e o senhor Pinto, e a Guida, a Paula, a Isabel, o João, o S. João, o Ru-Ru, o Carlos, a Milena, a Juca, o..., mas se continuar por aí não há espaço para tanto coração. Tudo está onde nos fazemos, eu estou nessa escola.