PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

 

Entrevista PROFFORMA ao Professor Doutor José Lopes Cortes Verdasca - Universidade de Évora - Coordenador Nacional da EM PNPSE

Luísa Moreira
CEFOPNA

Profforma – Passados quatro anos sobre o arranque do Plano Nacional de Promoção do Sucesso Escolar (PNPSE), qual o balanço que faz como Coordenador do mesmo e considerando, sobretudo, o contributo dado na promoção do sucesso das aprendizagens dos alunos?

JV – Existe evidência do ‘efeito PNPSE’ nas dinâmicas curriculares e pedagógicas das escolas e no germinar de novas relações e lógicas de ação entre os diversos atores e entidades com impacto educativo nas comunidades. Para além de estarem traduzidas em muitas das prioridades de intervenção inscritas nos planos de ação estratégica e mais recentemente também nos planos de desenvolvimento pessoal, social e comunitário, a formação contínua que emergiu nos CFAE com um sentido de recurso estratégico e de desenvolvimento da escola, as convergências de muitas das iniciativas desenvolvidas pelos municípios e entidades intermunicipais através dos seus planos de combate ao insucesso escolar e de que os vários programas de literacia da leitura, de literacia matemática e de literacia científica em curso, reunindo nessa intervenção escolas, centros de investigação/instituições de ensino superior, constituem alguns exemplos numa certa ideia de territorialização das políticas educativas e da importância da sua naturalização. Por outro lado, os resultados sugerem claras melhorias na qualidade das aprendizagens e do sucesso escolar, da equidade educativa e dos ganhos de eficiência escolar (fig. 1).

Profforma – É frequente ouvirem-se os professores alegar que há projetos e mudanças em excesso, sem que se dê a cada um o tempo necessário para poder fazer uma avaliação rigorosa de resultados. Será que o processo de Autonomia e Flexibilidade Curricular (AFC), alargado no ano letivo 2018/19, veio comprometer os objetivos do PNPSE?

JV – Não, de modo algum. Embora em algumas escolas possa ter sido apropriado como um projeto paralelo ao PNPSE, na verdade, a AFC deve ser entendida como algo que alarga e potencia o espaço de liberdade e ação das escolas e dos professores na organização e abordagem do currículo, conferindo-lhe um enquadramento legal e, com este, novos caminhos de possibilidades de gestão curricular que anteriormente não estavam disponíveis. A essência do PNPSE, radica no princípio da confiança no trabalho das escolas e no princípio orientador de que cada comunidade educativa está melhor preparada para encontrar soluções para os seus problemas, uma vez que conhece o respetivo contexto, dificuldades e potencialidades, apoiando-as na conceção e implementação dos seus planos de ação e melhoria, enquanto instrumentos que orientam e estruturam a operacionalização e concretização dos principais objetivos e prioridades do projeto educativo. Em outra parte, escrevíamos a propósito do plano de ação estratégica que a sua elaboração deve estar suportado em lógicas bottom-up convidativas a exercícios de construção local participados que privilegiam a dimensão incremental da ação através da criação de respostas e soluções contextualizadas para os problemas educativos sinalizados e que requerem o escrutínio e aprovação do Conselho Pedagógico e do Conselho Geral da Escola, por contraponto às tradicionais perspetivas top-down de produção jurídico-normativa das instituições governamentais e à ação administrativa e prescritiva do Estado. Sendo estratégico, as medidas nele inscritas tenderão a incidir sobretudo nas dimensões da organização pedagógica e da gestão do currículo, enquanto dimensões cruciais da ação das escolas e, neste âmbito, poderemos elencar como áreas de maior incidência as relacionadas com a organização e desenvolvimento do currículo, designadamente, abordagens didáticas e metodológicas diferenciadas e alternativas, novas conceções e práticas avaliativas das e para as aprendizagens, mas também novas configurações em termos da gramática escolar, de redes colaborativas multidisciplinares intra e inter instituições ou de sistemas de acompanhamento e regulação e multirregulação local. Ora, daqui se conclui que a AFD não deve ser percebida como algo à margem ou que se movimenta por caminhos paralelos ao PNPSE, mas antes como novas possibilidades agora legalmente enquadradas para organizar e flexibilizar o currículo e que estão para todos os efeitos enquadradas nos princípios do PNPSE. Aliás, se assim não for, perde sentido e significado a ideia do local como espaço de definição e multirregulação das políticas educativas e da importância da articulação entre os diferentes centros de decisão que atuam no território na afirmação da territorialização das políticas e na construção de novas ordens educativas locais.

Profforma – O Senhor Professor tem defendido que o meio socioeconómico dos alunos tem um reflexo significativo como preditor do sucesso dos mesmos. Considera que as medidas em vigor, concretamente a AFC, os decretos-Lei nºs 54 e 55, a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania e o Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória (PASEO), conseguiram contribuir, de forma visível, para minimizar o efeito do preditor referido?

JV - Não se trata de eu defender, mas antes de factos que as estatísticas escolares ostentam evidenciando disparidades de desvios etários e das diferentes magnitudes de risco de insucesso escolar dos alunos em função das suas origens sociais e do capital escolar familiar; em suma, e para usar uma expressão a que por vezes recorro, dos efeitos das estruturas de dominância social e cultural nos processos de realização escolar. Quanto às medidas, é preciso distinguir os diferentes planos em que as mesmas se situam. Quando convocamos o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória estamos a falar de um referencial de orientação no que respeita a valores, princípios e áreas de competências; já quanto às medidas preconizadas nos Decretos-Lei nºs 54 e 55, na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, e outras, devem ser entendidas mais no plano instrumental do que no expressivo e, como tal, como modos de ação relacionados com a execução e a gestão do currículo na escola tendo como quadro de referência, nas opções metodológicas e abordagens curriculares tomadas, o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória.

Profforma – Considera que o processo de AFC está a transformar a vida das escolas e, especificamente, a promover a adoção real de metodologias construtoras de sucesso na realidade portuguesa?

JV – É expectável que assim seja, pela diversidade de soluções de abordagem do currículo, de adaptação e diferenciação pedagógica que oferece.

Profforma – Apesar de muitos esforços por parte de Agrupamentos e Escolas, ainda hoje existem turmas de segundo, terceiro ciclo e secundário com trinta (e mais) alunos. Concorda que há, da parte da tutela, pouco investimento na contratação de docentes?

JV – Por razões várias a carreira docente foi sendo desvalorizada tornando-se pouco ou nada atrativa, sobretudo quando as horas de trabalho letivo se distribuem por vários anos de escolaridade, a diversidade de disciplinas impera e se distribui por bastantes turmas. São atualmente muito poucos os alunos do ensino secundário que admitem a possibilidade de vir a ser professores e os que ingressam em cursos de formação de professores raramente decorre de primeiras escolhas. Por conseguinte, já não é só um problema de contratação ou não contratação, mas antes de bolsas de professores disponíveis para contratação. O aliviar das densidades de carga curricular das turmas e o emagrecimento dos contingentes de professores em mobilidade em tarefas administrativo poderão aliviar alguma desta pressão, sendo que o problema requer respostas de outra profundidade e não devendo dispensar um debate alargado sobre novas políticas de formação inicial de professores e de organização curricular e pedagógica da escola.

Profforma – O mais recente investimento volumoso feito pelo governo na educação prende-se com a era digital, Plano Digital para a Educação. Parece-lhe que a primeira prioridade da Educação em Portugal é a era digital?

JV – Não será certamente a prioridade, mas é uma das prioridades estratégicas na modernização e estruturação da escola e do trabalho educativo. A utilização de softwares educativos e a integração de dispositivos tecnológicos na sala de aula faz parte de uma nova conceção de sala de aula que vai tirar partido do quotidiano dos alunos dentro e fora da escola, bem como acrescentar valor e justificar a utilidade dos dispositivos tecnológicos nos processos de apoio à aprendizagem tendo em vista o desenvolvimento das competências tecnológicas dos alunos numa perspetiva transversal. Cada organização escolar deve alcançar a maturidade digital e, enquanto tal, mostrar a sua capacidade para construir e utilizar um diversificado e sólido repositório de materiais digitais, constituir-se como uma comunidade reflexiva das práticas e dispor, internamente, de competência técnica e tecnológica capaz de desbloquear situações complexas na utilização do digital. Por outro lado, a evidência científica mostra que a inclusão de tecnologia, em sala de aula, cria ambientes de bem-estar educativo, conduz a um maior envolvimento dos alunos na aprendizagem, autoeficácia, comportamento e competência em tecnologia e favorece o desempenho escolar dos alunos. Para que os ambientes de aprendizagem com recurso a suportes tecnológicos se naturalizem é necessário assegurar boas infraestruturas tecnológicas e conectividade e, sobretudo, professores motivados que reconheçam que a tecnologia proporciona uma boa interação com os alunos e uma boa assimilação de informações. O cerne da questão, em tempos de ‘internet das coisas’, é também tornar prioritária a formação em competências digitais, não tanto em software geral, mas sobretudo em ferramentas que exploram a centralidade do currículo, quer pelas possibilidades de desenvolvimento do currículo de modo mais estimulante quer pela versatilidade que oferece tanto em ambientes de ensino presencial como na implementação do ensino online. 

Profforma – Em sua opinião, e tendo acompanhado o trabalho desenvolvido pelos CFAE, a formação de professores tem acompanhado as reais necessidades dos Agrupamentos e Escolas?

JV – Estaremos, provavelmente, numa fase de transição em termos de prevalência das lógicas de formação contínua dominantes. Diria que, da transição de uma lógica de formação contínua especialmente centrada nas necessidades e interesses individuais dos educadores e professores para uma lógica de formação contínua como resposta às necessidades da organização-escola e em que estas necessidades formativas tenderão a decorrer da estratégia de desenvolvimento da escola ou de microrredes de escolas e das dinâmicas educativas que estas pretendem implementar de acordo com os seus objetivos estratégicos e planos de ação. Não significa que não deva haver espaço para a oferta e procura formativas baseadas em interesses individuais; claro que sim, mas a formação de tipo avulsa não deve ser a prevalente. A formação contínua deverá afirmar-se como um recurso inovador do desenvolvimento da escola que se afirma na dimensão incremental da ação pedagógica e na sustentação da criação local de respostas educativas contextualizadas.

Profforma – Sabemos que a Escola tem de, simultaneamente, promover a mudança/ preparar o futuro e manter a segurança e a matriz cultural de um povo. Em sua opinião, a Escola portuguesa tem sido capaz de promover este equilíbrio?

JV – Claramente. Foi, no contexto português, dos sistemas sociais que mais evoluiu nas últimas décadas. Não nos foquemos apenas no ponto onde nos encontramos, mas também no ponto onde estávamos há 50-60 anos atrás. Recordemos que em Portugal a taxa de escolarização aos 15 anos passou de 13,0% em 1960/61 para 99,9% atualmente. O que já se alcançou num tempo tão curto é na verdade notável e deixa-nos a garantia que seremos capazes de continuar a fazer progressos significativos no nosso sistema educativo.

Profforma – Apesar de muitas tentativas de mudança de práticas, e de mentalidades, muitas Escolas e Agrupamentos, e incluímos alunos e encarregados de educação, vivem focados nas classificações dos alunos e, sobretudo, nos resultados dos exames onde, infelizmente, o PASEO é ignorado. Como vê esta realidade?

JV – Os paradigmas avaliativos são naturalmente induzidos pelos modelos externos de regulação, e ainda mais quando estes são de natureza coerciva, como é o caso dos exames do 9º ano e do ensino secundário, e que desde há vários anos imperam no nosso modelo educativo. Na verdade, os exames enquanto instrumentos de regulação educativa nacional são depósitos de uma visão para a educação e de governo da educação e antes disso de fabricação de modos de ação e trabalho docente que por serem objeto de escrutínio público podem expor os docentes e as escolas a beliscaduras de reputação irreversíveis. A excessiva preocupação pelo sucesso dos alunos nas provas externas tende a determinar o currículo e a sua abordagem e, muitas vezes, esta influência exerce-se não só no ano de escolaridade em causa, mas também sobre anos precedentes gerando o que alguns autores designam de ‘efeito de refluxo’. A prevalecerem no futuro, talvez uma das possíveis chaves resida numa lógica ecológica de provas cuja estratégia escolar, para a superação dos desafios que nelas estão colocados, dificilmente possa contornar abordagens curriculares orientadas pelo referencial de competências do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória.